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Acadêmico: Gabriel Chalita O silêncio foi nos acompanhando por mais alguns passos, enquanto as águas se atiravam em nossos pés. Era um dia de mar calmo, era um dia de mar explicativo.
O badalar preguiçoso do sino da Igreja avisa que é sobre morte. Esse ano a primavera resolveu descansar. E, então, o frio prolongado do inverno impediu renascimentos. Foi assim que acordei. Triste de um desligar durante o dia. Não é sempre que durmo à tarde. Os ventos daquele setembro pareciam excessivamente desnecessários. Olhei para a Estela, que trabalha comigo, e compreendi o meu mal-estar por não estar ela vivendo o mesmo luto que eu. Faz alguns dias, recolhi as falas. Reservei a mim as minhas ideias e o meu vazio. A memória, caprichosa, criava textos com exclamações. Viver sem Alberto era espaço não imaginado até pouco tempo. Foi em um meio tom, entre o despedir do dia e o anoitecer, que ele levou o que faltava e foi morar com a inominada. Era ela conhecida de frequentar nossa casa. Era ela bastante limitada nos comentários sobre o viver. Fui eu que errei ao não perceber que as fingidas ingenuidades têm sua importância. Alberto vive com ela do outro lado da Igreja. Ouvem o mesmo badalar do sino que ouço. Devem saber que tratam de falecimento as tristezas do sino de hoje. Não tivemos filhos. Melhor. Não tivemos tempo de aquecer a lamparina do futuro com os chamegos que desperdiçamos. Sempre fui uma mulher do trabalho. Enfermeira pela convicção dos alívios que minhas mãos trazem ao mundo. Desdigo pessimismos e devolvo sorriso aos outros. A mim, cultivo a dor do abandono, da traição, da troca. Estela, enquanto varre o quintal, sorri de algum pensamento. Pergunto. Responde nada. Apenas sorri. Abandonada, também, pelo marido, Estela vive de cuidar dos filhos, de mim, e da alegria de estar viva. O enterro passa ao longe. Cidade pequena é possível saber quem vai e quem chega. Na minha idade, tenho medo de não mais arder por amor. Nem sei se amor arde. Sei que arde o pensamento que pensa no que faz o amor, quando faz amor em outra cama. Já pensei em incendiar a casa deles. Já assisti às labaredas consumindo suas mentes arrependidas do que causaram. Fiz nada. Nasci para cuidar. O resto limpo quando vem ao pensamento. Estela, percebendo o meu vazio, me convidou para ir à padaria. Sem resistência, aceitei. Insistiu que fôssemos pela praia, carregando as chinelas em nossas mãos. O infinito do mar venta energias e reacende vidas. Foi quando vimos um braço de uma estrela-do-mar. Foi quando Estela explicou de sua capacidade regenerativa. Quando perdem um braço, são capazes de ter novamente o braço perdido. E o braço perdido consegue ser uma outra estrela-do-mar, inteira. Chorei com a explicação. Ela prosseguiu ensinando que, se compreendermos que fazemos parte da natureza, a natureza regenerará em nós as partes perdidas. O silêncio foi nos acompanhando por mais alguns passos, enquanto as águas se atiravam em nossos pés. Era um dia de mar calmo, era um dia de mar explicativo. Olhei, com profunda admiração, para a simplicidade de Estela. Ela, cortada por um marido violento, se refez. Ela, sofrida pela traição, se refez. Ela, sozinha para criar os filhos, se fez a estrela que é hoje. Bondosa. Não há brilho maior do que resplandecer bondades. Uma paz explicou que eu estava errada, primaveras não descansam. Inteiras, limpamos a areia dos pés e entramos na padaria do João Antônio. Ele olhou de um jeito bom. Disse que era bom quando eu ia. Sorri desajeitada. Era ele um pouco mais novo do que eu, viúvo, jeitoso com os dizeres. Era alto e forte. Já havia me olhado, outras vezes, e eu desviado. Por que o trancafiamento? E, então, percebi os meus pensamentos se limpando dos ontens. Nos convidamos para um banho de mar. Amanhã. Estela acenou com a cabeça, feliz, enquanto fazia o pagamento do pão, da manteiga e do punhado de queijo que poderíamos usar para um café acompanhado. voltar |
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