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Acadêmico: José Renato Nalini Embora a humanidade seja um complexo plúrimo, formado por singularidades irrepetíveis, é natural o grupamento dos indivíduos que comungam das mesmas ideias. Portam idênticas convicções, alimentam-se de ideologias análogas, são devotos de uma fé com única tonalidade.
Pássaros de igual plumagem Embora a humanidade seja um complexo plúrimo, formado por singularidades irrepetíveis, é natural o grupamento dos indivíduos que comungam das mesmas ideias. Portam idênticas convicções, alimentam-se de ideologias análogas, são devotos de uma fé com única tonalidade. Quando nutridos de insumos habilmente produzidos, reforçam suas crenças e se fanatizam. A partir daí, seja quem for que ouse pensar de forma diversa, é rotulado de inimigo, não de adversário. O fanático não sabe e não quer dialogar. Prefere ficar no seu coxinho, irmanado aos imantados pela mesma energia. Os fanáticos sempre existiram. No decorrer da História, levaram ao patíbulo e à fogueira seres que não puderam expor suas ideias sem incorrer no pecado mortal, na verdadeira heresia da contrariedade. São esses que precisam de mitos para o feedback, para a retroalimentação de suas certezas. A origem oral do mito faz com que ele não seja fixo, porém multiforme. Para o estudioso Philip Wilkinson, autor de “Mitos & Lendas”, “os mitos reforçam a identidade cultural do povo que os conta. Para os aborígenes da Austrália, os mitos de origem de cada tribo não só falam dos ancestrais como também das rotas que percorreram pela terra quando criaram cada acidente natural: a terra, seu povo e seus mitos estão inextricavelmente unidos”. Quando o humano é desprovido de educação formal, não aprendeu nem leu o suficiente, ele é geralmente vítima da adoção de mitos, uma opção emotiva, pois “os mitos resultam de uma relação íntima entre as pessoas e o mundo natural e espiritual – coisa que muitos de nós já perdemos. Eles operam na fronteira entre a realidade e a fantasia, celebram a estranheza e a incerteza e descrevem terríveis forças cósmicas”. Não é raro, na História, que um conglomerado de pessoas desprovidas de um preparo intelectual apropriado, carentes de concreta significação e sentido para a sua medíocre existência, acorram ao chamado de profetas que passam a encarnar o mito. Este mito opera o fenômeno da agregação ideológica e consegue inspirar gestos de coragem que o indivíduo, sem esse estímulo, não externaria. Não raro, atribuem ao escolhido uma condição sobre-humana, um poderio extraordinário como a de um Atlas, que governava a Atlântida. Seu povo se degenerou e os deuses resolveram castigá-los com a destruição de toda a sua raça. Um enorme dilúvio exterminou toda a população e a Atlântida, que era uma ilha, foi arremessada para o fundo do mar. Como Atlas liderou os titãs na Guerra Cósmica, foi castigado com o encargo de segurar o céu sobre seus ombros. Hoje, o castigo vem sob outras formas. Seguir automaticamente alguém desprovido de discernimento acarretará um custo incalculável, a ser suportado por várias gerações. O impressionante é o fenômeno da coesão entre os fanáticos. Irmanam-se, vibram juntos, berram juntos, desfilam juntos. Igualmente juntos exibem suas armas e seus gestos belicosos. Parece que essa visão preconceituosa do mundo já existia, mas estava numa espécie de eclipse, ofuscada pelo pensamento oxigenado do pós-modernismo. Foi necessário o surgimento desse mito para que o constrangimento deixasse de existir e a explosão rebelde aflorasse com força e muita ênfase. O rumo dessa jornada não sugere um fim que se possa chamar venturoso. Omitem-se os sensatos, os prudentes, os serenos. Seu vácuo é ocupado pelos robotizados ideologicamente, ávidos de confronto. A omissão dos bons é deletéria. Eles são a maioria e são responsáveis pela manutenção da ordem, esteio do Estado de direito de índole democrática. Recorde-se a advertência de Jean Braudillard: “Cada catástrofe faz perfurar o abcesso da responsabilidade coletiva nossos sistemas secretam uma tal carga de responsabilidade flutuante que ela se condensa de tempos em tempos como a eletricidade estática no raio, a fagulha sendo fornecida pelo acidente ou pela catástrofe. A todas as camadas que pairam sobre nós (ozônio, gás carbônico, etc.), devemos acrescentar esse amontoado de responsabilidade, essa nuvem radioativa que está à espreita da mínima oportunidade para estourar”. Um dia ouviremos, do Tribunal da consciência ou do juízo transcendental, a inquietante indagação: “Onde estavas e o que fizestes?”. Publicado no Blog do Fatusto Macedo/Opinião/Estadão Em 24 09 2021 voltar |
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