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Acadêmico: José Renato Nalini No momento em que as “narrativas” invadem nossos espaços e entopem nossa capacidade de absorção, é bom lembrar o que significa a palavra, de acordo com os que permaneceram muito tempo à procura de desvendar língua e realidade.
Muito se fala, pouco se diz No momento em que as “narrativas” invadem nossos espaços e entopem nossa capacidade de absorção, é bom lembrar o que significa a palavra, de acordo com os que permaneceram muito tempo à procura de desvendar língua e realidade. “Língua e realidade” é exatamente o nome do livro de Vilém Flusser, cujo prefácio de Gustavo Bernardo Krause tem início com a instigante questão: “Se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia?”. Flusser era de Praga e teve de fugir do nazismo em 1939, acolhido no Brasil. Quando voltou à sua cidade em 1991, para uma conferência no Instituto Goethe, entusiasmou-se tanto que alternava o tcheco e o alemão e, lá pelas tantas, falava em português. Língua de sua esposa Edith, de seus filhos, a língua de seus afetos, como diz Bernardo. Nessa viagem, quando faziam piquenique nos bosques da juventude, acidentaram-se e ele morreu. Flusser faleceu na cidade em que nasceu, em 21 de novembro de 1991. Daqui a pouco, celebrar-se-á o trigésimo aniversário de sua morte. Numa carta a Mira Schendel, que ofereceu o desenho da capa de seu livro, Flusser explica porque se traduzia a si mesmo: escrevia tudo em alemão, “que é a língua que mais pulsa no meu centro”. Traduzia em seguida para o português, “que é a língua que mais articula a realidade social na qual me tenho engajado”. Depois traduzia para o inglês, “que é a língua que mais articula a nossa situação histórica e que dispõe de maior riqueza de repertório e forma”. Finalmente, traduzia para a língua na qual queria que o escrito fosse publicado – “por exemplo, retraduzo para o alemão, ou tento traduzir para o francês, ou reescrevo em inglês”. Alguém capaz de “penetrar as estruturas das várias línguas até um núcleo pobre, articular a minha liberdade”. Por estranho parecer possa, não escrevia em tcheco, pois “a expressividade adocicada da língua materna não lhe agradava, embora comentasse, galhofeiro: “eu falo tcheco em várias línguas”. Ele deixou um manuscrito inédito, “Retradução enquanto método de trabalho” e nele evidenciou o seu fascínio com os acordos e desacordos entre as várias línguas e seus “espíritos”, como gostava de chamar. “O alemão desafiava a sua mente a não se entregar ao convite sedutor da profundidade para, então, buscar clareza. O francês, ao contrário, desafiava-o a resistir ao virtuosismo verbal para obrigar a língua a tocar em surdina. O português seria para ele a língua das digressões, logo, da indisciplina, convidando-o a conter-se. O inglês, língua síntese, contendo tanta ciência, técnica, filosofia e kitsch quanto nenhuma outra, desafiava-o a podar a profundidade alemã, o brilho francês e a genialidade portuguesa, de modo a reduzir o texto ao essencial”. A língua, para Flusser, foi o seu compromisso e sua maneira de cultivar a religiosidade. Por isso ele dizia: “os contornos do meu futuro pensamento começavam a delinear-se; o problema central viria a ser a língua. Em primeiro lugar, obviamente, porque amo a língua. Amo sua beleza, sua riqueza, seu mistério e seu encanto. Só sou verdadeiramente quando falo, escrevo, leio ou quando ela sussurra dentro de mim, querendo articular-se. Mas também porque ela é forma simbólica, morada do Ser que vela e revela, vereda pela qual me ligo aos outros, campo de imortalidade aere perennius, matéria e instrumento da arte. Ela é meu compromisso, através dela concebo minha realidade e por ela deslizo rumo ao seu horizonte e fundamento, o silêncio do indizível. Ela é minha forma de religiosidade. É, quiçá, também a forma pela qual me perco”. Para Flusser, “universo, conhecimento, verdade e realidade são aspectos linguísticos. Aquilo que nos vem por meio dos sentidos e que chamamos “realidade” é dado bruto, que se torna real apenas no contexto da língua, única criadora de realidade. No entanto, como as línguas plurais divergem na sua estrutura, divergem também as realidades criadas por elas”. Uma pena que Flusser esteja tão esquecido e que sua lição não seja aproveitada pelos brasileiros. Foi um estrangeiro que trabalhou a língua portuguesa como personalidade autêntica, deixou-se arrastar pela beleza dos verbos “ser” e estar, “saboreou o misterioso “há”, esforçou-se por desvendar o segredo do futuro formado por “haver” e “ir”, sem perder o contato com as três línguas de sua intimidade: alemão, inglês e o tcheco”. Quando se compara o que Flusser escreveu com a indigência das manifestações de personalidades que deveriam ao menos dominar seu próprio idioma, reconhece-se a fragilidade da educação tupiniquim. Resta ao menos o prazer do deleite, na leitura da consistente e instigante obra de Vilém Flusser. Para o húngaro Paulo Rónai, “se cada língua é um mundo diferente e, ao mesmo tempo, o mundo inteiro, o problema da tradução e do poliglotismo reveste-se de importância descomunal. Antes que uma conversão, a tradução é uma comparação; mais do que isso, uma ressurreição”. Lamentável, também, que o monoglotismo seja outra característica tipicamente brasileira. O bom é que os jovens perceberam isso e procuram se exprimir em outros idiomas. O que está cada vez mais fácil, até pela acessibilidade das fontes online. Um dia esta terra poderá ser melhor. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão Em 15.09.2021 voltar |
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