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Acadêmico: Gabriel Chalita "Há tanto de mim em mim. Há tanto dos que foram e que não foram. Há um devagar dos dias e um depressa dos anos me explicando sem explicar que mando nada no que penso."
Há tanto de mim em mim. Há tanto dos que foram e que não foram. Há um devagar dos dias e um depressa dos anos me explicando sem explicar que mando nada no que penso. E, então, me afundo no fundo de mim e expando a atenção para compreender por que penso o que não teria precisão de pensar. Isso, quando me aborreço com distrações. Sou do silêncio e falo nada de mim a quem se aproxima. Desconfio dos certificados em conhecimento. Conhecer exige bondade. É assim que aprendi com o finado professor Amaury. Dia desses, uma foto me falou daquele tempo. Eu era magro demais e alto demais para ser aceito. Aluno novo vindo de escola velha e sentando em lugar errado. Riram de mim e, de mim, fizeram troça. Errei nas contas. Era novo demais para acertar a matemática do mundo. Amaury me olhou na alma e me acalmou os medos. Mostrou a lousa do tempo disfarçando a luz do futuro que espantaria qualquer dissabor daqueles dias. Fui me ajeitando na nova escola. Querendo ser ele. Até o imitava na solitária varanda que dava para dentro de casa. Rasguei a timidez no dia certo, nem antes, nem depois, e expliquei as somas que os sonhos e os esforços eram capazes de alcançar. Minha avó, em silêncio amoroso, ouvia as minhas aulas. Sem dormir. Sem desviar o olhar. Era companheira dos inícios. E teimava em aplaudir, quando eu dava por encerrada a lição daquele fim de tarde. Morreu minha avó em um dia triste. Faltei à escola, mas já era escola dos grandes. Juntos aos andarilhos que subiam ao cemitério, na pequena cidade, estava ele, o professor Amaury, e a sua mulher, dona Diva, que nos oferecia doces de pote para amainar os azedumes da vida. Tempos antes da formatura, um dos nossos morreu no mergulho arriscado de uma cachoeira grande. A dor avisou à nossa idade que a morte existe. Deixei o interior para ser professor na capital. Casei com os livros e com a intenção de adoçar de conhecimento a vida. Moro em uma das tantas periferias que, de central, tem as ausências. Dia desses, entrei em uma sala e encontrei um riso sem amor contra um aluno perdido nas atitudes. Observei com calma e viajei no tempo em que de mim cuidaram, quando o respeito faltou. Falei bondades ao aluno, contei de mim, ofereci a lousa cheia de possibilidades para escritos seus e corrigi as rasuras que se causam ao outro, quando o outro é diferente do que sabemos nós. A diretora da escola teima comigo que tem gente boa e tem gente ruim no mundo. Eu ouço e silencio e, quando antevejo uma trilha segura, caminho cuidadosamente sobre seus pensamentos e explico os meus, "gente ruim é plantio malfeito". E dou exemplos. Ela ora acredita, ora desacredita dela mesma na árdua tarefa de educar os deseducados. "Bom seria se os pais educassem primeiro", resmunga ela já andando para longe de minhas insistências. Entro na sala dos professores e me alimento da saudade dos doces de pote da dona Diva. Tinha de leite, de figo, de abóbora e de laranja. O sabor valia menos que a intenção. A casa deles era quase em frente à escola e a mesa grande em que cabia o mundo ficava embaixo de uma árvore que atingia o céu. Está tudo na fundura de mim. Tanto o futuro que me antecipa a ultrapassagem do presente em dias estranhos, como o passado que, quando perco a luminosidade, me lembra das gentes boas que ficaram em mim. voltar |
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