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FHC AOS 90
Acadêmico: Celso Lafer
Sua preocupação hoje é com a onda regressiva que põe em questão a vigência da democracia

Fernando Henrique Cardoso chega aos bem temperados (como o cravo de Bach) 90 anos na plenitude das qualidades que dele fizeram, ao mesmo tempo, um intelectual de envergadura e um grande homem público. Essas vertentes se entrelaçam criativamente. Combinam, numa dialética de mútua implicação e complementaridade, a “paixão por entender, a chama que move os intelectuais”, e a “compulsão por fazer, o ethos da política”.

Essas suas palavras nas recém-publicadas Memórias esclarecem a perspectiva organizadora da sua densa caminhada. Esta levou um intelectual de grande talento, que obteve com sua obra e seu magistério reconhecida presença no mundo universitário do País e do exterior, a projetar-se com influência no espaço público e depois converter-se em ator político de primeira plana.

O sentido de direção da sua compulsão para fazer muito deve à sua paixão intelectual por entender. Nas suas obras, pesquisas e contínuas leituras empenhou-se “em desenvolver uma ação intelectual voltada para entender e mudar o Brasil”. Raciocinou movido pela curiosidade do sociólogo, interessado no que vem vindo e está em andamento.

Essa forma mentis originária se ampliou com sua experiência de intelectual no exterior. No Chile, deu-se conta da relevância da América Latina. Na França e nos Estados Unidos, ampliou sua capacidade de orientar-se no mundo.

Traduzir pensamento em ação requer capacidade de liderar. No caso de FHC, um dos dotes para obter adesão foi a sua qualificada aptidão intelectual para explicar a racionalidade dos caminhos propostos.

O aprendizado da liderança se fez na Universidade de São Paulo (USP), buscando, como jovem assistente, reorganizar a carreira docente com participação ativa no Conselho Universitário, onde soube construir uma ação cooperativa com mandarins universitários e figuras públicas. Esse aprendizado lhe foi útil para o exercício da liderança intelectual e política, com que logrou reunir pessoas, competências e vontades. São componentes dessa liderança a capacidade de ouvir e interagir com amplo e diversificado espectro de pessoas, num trato de civilidade respeitosa, permeado por construtiva postura democrática, destituído das baixas paixões de ressentimentos e inveja.

Buscou “convencer sem impor”. Teve presente o repertório haurido da convivência familiar, de muitas gerações de militares que participaram da vida política do Brasil. Merece destaque a presença do pai, general Leônidas Cardoso, também advogado e deputado, que o advertia sobre as insuficiências de circunscrever-se aos livros: “Os que leem muito sabem, os que veem às vezes sabem mais”.

Os dotes de liderança e a agilidade da inteligência de sociólogo contribuíram para a qualidade de seu juízo político, que lhe deu a aptidão para perceber as circunstâncias que singularizam contextos e conjunturas e orientar-se na História. Nunca faltou uma visão global para entender o conjunto das coisas. Sempre logrou mesclar o geral com a sensibilidade para captar o concreto do espaço de mudanças que estavam ao seu alcance para fazer da política não a arte do possível, mas a arte de ampliar o campo do possível para tornar viável o necessário. Assim, na Presidência, definiu rumos e descortinou horizontes, construindo um legado de realizações do qual até hoje nos beneficiamos.

Ao fim da Presidência, avaliou que se havia encerrado o ciclo de sua vida política ativa e direta. Seguiu a advertência de Sainte-Beuve, que Antonio Candido citava: “É preciso deixar as coisas um pouco antes que nos deixem”. Reinventou-se com sabedoria na pós-Presidência.

Criou a Fundação Fernando Henrique Cardoso, dedicada a estudar e debater os grandes itens da pauta nacional e internacional, e passou a exercer, com a autoridade de seu percurso de vida, a função de intelectual público, fazendo uso da razão e do conhecimento para discernir rumos em novas circunstâncias.

A democracia como fundamento de um Brasil mais justo e próspero foi o tema recorrente de FHC no entrelaçamento do intelectual e do político. A essa tarefa se dedicou nos processos de transição do autoritarismo para a democracia, apetrechando-se na sua ação com as contribuições da ciência política.

Na etapa atual, sua preocupação é com a onda regressiva que no Brasil e no mundo põe em questão a vigência da democracia. A “paixão por entender” levou-o a elaborar o livro Crise e Reinvenção da Política no Brasil, de 2018, em que discute como reconectar na era digital “o mundo da vida e da sociedade” e o “mundo das instituições e do Estado”, no qual identifica o grande desafio do déficit de confiança da política democrática contemporânea.

Os processos, ora em curso no Brasil, de cupinização da democracia dão a esse tema urgência vital. É o que esclarece e reitera nos capítulos 11 e 12 das Memórias. É o que explica as suas intervenções no debate nacional, em que, com altitude, aos vigorosos 90 anos, vem exercendo com liberdade o seu papel de intelectual público.


Publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 20 de junho de 2021.



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