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BEBENDO A DESCONFIANÇA
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Desconfio do que sei porque não sei se sei ou se acho apenas que sei para impressionar."

Doutora Julieta desconfia de mim. Sei disso. Talvez, tenha os seus motivos. Já foi enganada à exaustão. Por outras que, por aqui, trabalharam. Por homens que passaram por sua vida. Por vidas que despedaçaram a sua. Eu entendo. Também desconfio dela. Também eu já vivi a iminência do desistir.

Quando Roberto foi embora, sorrindo, eu olhei nos seus olhos e vi uma outra mulher desalojando os meus espaços. Dói ser trocada. Oscilamos os limites da não existência. A vontade de não mais estar. Imaginei rabiscando um solilóquio dramático de um fim. Apaguei os dias em que não existi, depois de muitos dias. E voltei a brincar de viver, desconfiando.

Confio nada nos homens. E, também, nas mulheres. Judite trabalha comigo no consultório da Doutora Julieta. Jura amizade e esconde informações. Tem medo de que eu ocupe o lugar dela. Sorrimos, ora sinceras, ora obrigadas pelas circunstâncias dos dias. Desconfio das suas histórias, dos seus vitimismos. Sempre sofrida, sempre disposta a ajudar. Sei não.

Sou de outra espécie, da que finge heroísmos. Quando disse a ela o que disse a mim o Roberto, ela quis saber por que não retruquei. Não sou de retrucar. Bebendo a desconfiança, fui matando a sede das incompreensões, fui percebendo que é dentro da gente que devem morar as melhores respostas.
 
Desconfio dos políticos. Não sem razão. A razão tem me ensinado que os egoísmos são como que uma camisa de força que nos prende à infelicidade, e que os que conseguem se libertar e abraçar alguma bondade  tornam-se grandes na humanidade. Mas quantos são assim? 

Desconfio dos que me vendem facilidades. Viver é árduo. Não se colhe o não plantado. Disfarço atenção aos que sorriem sem sinceridade. Não serei uma mulher impolida. Nem abraçarei a desagradável sentença de julgar, apressadamente, os que se aproximam. Sou cautelosa. Ou medrosa, talvez.

Gosto da mãe da doutora Julieta. Seus enfeites de vida brotada nos sacrifícios. Gosto da sinceridade com que ela desconfia e revela as desconfianças. Da própria filha, inclusive. Que quis antecipar a herança. Que quis administrar a mãe. Os olhos dela ensinam a beleza de uma velhice com sabedoria. Conversamos, há alguns dias, sobre uma amiga que morreu, "a velhice nos ensina a conviver com as despedidas", foi o que disse, sem rancor e sem alegria.

Há muito, ela não lê jornais. Leu, em algum livro de que não se lembra, que são aperitivos de mau gosto para abrir o dia. 
Disse eu a ela, quando ainda sofria da partida de Roberto, que contava os dias para envelhecer. Que aí, sim, seria plena. Que os desejos seriam passado. Que as tormentas cederiam espaço aos silêncios aconchegantes. Ela sorriu com os olhos desconfiados e disse, como que descortinando mistérios: "respeite o tempo". 

Tenho uma filha que é um pedaço de mim, que é o amor que me faz inteira. Lembro-me da gravidez. Dos dias que antecederam o parto. Eu que sou dada a pensamentos inusitados ficava imaginando que, depois da sua chegada, seria a pessoa mais importante da minha vida. Que muitos amores seriam ali canalizados. E estava certa. É ela que me apresenta os meus mais lindos sentimentos. Ser mãe é arrebentar as tais camisas de força dos egoísmos e entregar o nosso inteiro a uma parte inteira que sai de nós. Mas até de mim desconfio. Quando sonho por ela. Quando decido por ela a escolha da felicidade. Quando resolvo trancar os seus sofrimentos com as minhas proteções. 
Sim, desconfio de mim. Das projeções. Das expectativas. Ela não é uma parte de mim para realizar a parte que ficou faltando da minha realização. Ela é ela, Sophia, o nome do que busco a vida toda. Saber. Desconfio do que sei porque não sei se sei ou se acho apenas que sei para impressionar. 

Na clínica, vejo pessoas buscando belezas. Quisera eu me formar em uma medicina de bondades. Trabalharia com mais decisão. 
Desconfio que a desconfiança nasceu em mim no dia em que nasci. Como proteção. Como honestidade de atravessar com cuidado as margens intranquilas da vida. A ponte é muito frágil e se constrói aos poucos. Com pedaço da gente que vai ficando. Com os tempos que vão e que dão liga às vigas que percorremos e que percorreremos. 

Quero envelhecer, sim, e acalmar os olhos para enxergar com beleza o outro lado. Desconfio que deva ser lindo.

Publicado no jornal O Dia (RJ), 13 de junho de 2021.



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