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AS CHAVES DA IGREJA
Acadêmico: Gabriel Chalita
"A Igreja silenciosa de hoje é o mundo silenciado por uma pausa que teima em se estender."

Acordei com os sinos avisando a missa.
Acordei assustado. Quem toca os sinos sou eu. 

O dia ainda dorme e, também, a Igreja. 
Triste uma Páscoa sem alegria. A sexta-feira da paixão invadiu os outros dias santos. É de morte que estamos vivendo.

Os calvários acumulam choros que invadem as cidades de silêncio. Nada de sinos. Os cemitérios têm um barulho próprio. Os passos vagarosos dos afetos, que acompanhavam a entrega do corpo do morto a terra, precisaram aguardar. E nada de abraços. Só a dor permanece invadindo todos os dias. 

Trabalho, há muito, na Igreja de São Sebastião. Sou sacristão, tenho as chaves e a obrigação da limpeza. Ontem, fiquei sozinho ouvindo o passado e vendo as gentes que, nesses dias, se emocionavam com os quadros santos da paixão. 

A Igreja silenciosa de hoje é o mundo silenciado por uma pausa que teima em se estender. Os lenços das mulheres de ontem, piedosas, deram lugar às máscaras protetoras de vidas. E foi, em uma sexta-feira, que pregaram o pregador do amor em uma cruz. E que o mundo se ajoelhou silencioso, depois dos estrondos dos homens que gritavam ódios.

Um inocente condenado. Inocentes continuam sendo condenados. E os ódios não morreram nem em uma sexta, nem nos outros tantos dias da semana.

Padre Silvio, com sua voz rouca e emocionada, lia os textos sagrados e nos convidava a convidar o que havia de morrer em nós que morresse. Que morresse a arrogância. Que morresse a perversidade. Que morresse a desumanidade. Na humanidade de Cristo, passaríamos a um outro tempo. A um tempo de libertação e de vida. 

Sou de pouca leitura, mas de Bíblia conheço. A páscoa antiga era a passagem da escravidão para a libertação. Seguindo Moisés, o povo de Deus se ergueu contra o que aprisionava e foi caminhando em busca de um sonho. Na páscoa nova, a nova vida. A morte se despede no amanhecer do domingo. E, então, a vida surge vitoriosa. As mulheres corajosas viram que o corpo sem vida era passado.
O sol havia mandado embora a escuridão. 

Há escuridão no mundo de hoje. Os medos não são só de um vírus que mudou a vida. Os medos são do vírus da insanidade, do desrespeito, do desamor. 
Sempre me intrigava pensar no que aconteceu com os que, em um domingo de ramos, festejavam a chegada de Jesus e, dias depois, mudaram de opinião e gritaram ódios exigindo sua morte.

O mundo continua matando. Por que demoramos tanto a aprender? 
Não nascemos para a escravidão. Não nascemos para espalhar mortes.  Nascemos para a compaixão. 

Algumas mulheres permaneceram ao lado de Jesus, enquanto muitos homens, por medo, o abandonaram. Mulheres fortes que se alimentaram de lágrimas e esperança. 

Janice, minha mulher, se foi em inverno antecipado. Demorei a aquecer os meus dias. Sua lembrança, hoje, já não dói, já traz alívios e gratidão. Vivi um amor simples durante anos de minha vida. Vivi muitas páscoas com ela e muitas primaveras em diferentes estações.

Vou a Igreja daqui a pouco. Sozinho, vou ajoelhar a vida e rogar à vida que vença a morte. Prossigo acreditando na páscoa, prossigo passando os meus dias soprando amor nos cantos que conheço.
Me reconheço em cada humano e, por isso, sofro por todos, mesmo pelos que não conheço. E, por isso, canto a liberdade na oração em que reconheço Deus. 

É páscoa. É dia de lembrar a vida, a vida milagrosa que não desiste nunca de nascer.

Publicado no jornal O Dia (RJ), 4 de abril de 2021.



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