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Acadêmico: Gabriel Chalita "Ela que cuidou de tantas vidas, nesses tempos horrendos. Ouvia suas emoções dizendo da tristeza de não ter respirador para todo mundo."
Eu não entendi direito o que aconteceu. Só sei que aconteceu. A Fabíola morreu. A Fabíola é filha da Antonia, enfermeira das doenças do corpo e dos abandonos da alma. Eu mesma fui, por ela, acolhida desde sempre. Meu pai morreu antes de me conhecer, não pôde esperar. E minha mãe, de doença em doença, viveu de ausências. Lembro dela, em um inverno inteiro, em qualquer estação. No dia em que ela foi ser recebida pelo meu pai, é o que quero acreditar, descansei de ver a sua dor e doí inteira a sua partida. Antonia, desde sempre, falou dentro de mim, e, então, permaneci vivendo os meus dias. Nunca pude desistir. Ela não deixava. Ria das esquisitices dela mesma, das manias que toda gente tem e que nem sempre revela. Ria de estar viva e de ser feliz por inteiro. A luz acordava esclarecendo o dia e me lembrando de que a bondade era minha vizinha. E ela pedia licença para entrar e trazer um pedaço de bolo de milho com coco para explicar à vida que merecíamos saborear a alegria. Depois, me arrastava para caminhar. E, se eu estava triste, dormia no sofá dos meus medos para espantar o que me trazia desconforto. Essas coisas eu não concordo. Por que justo a filha dela teve que morrer? A filha que cresceu comigo. A filha que me ensinou a ficar bonita, usando maquiagens estrangeiras que a mãe comprava. E ria o mesmo riso da mãe. Usavam, vez em quando, a mesma roupa. Era bonito demais de ver. A mulher e a menina e o mundo inteiro cabiam naquele amor. A Alzira, que é muito religiosa e frequenta sempre a minha vida, disse que me falta fé. Que nem tudo tem explicação. Mas eu não entendo. A mãe só faz o bem, a mãe tem uma única filha, a mãe já não tem mais a única filha, e sei que ela vai continuar fazendo o bem. Só que com o coração faltando o maior pedaço. Eu sei que, como a Antonia, como eu e a Alzira, tem muita gente sofrendo nesses tempos. Enquanto uns brigam, outros enterram seus mortos sem despedidas. E voltam para casa querendo acreditar que o dia da dor não existiu. Existiu, sim. Tão pouca gente no enterro de Fabíola. Velório nenhum. E Antonia despedaçada sem dizer nada. Ela que cuidou de tantas vidas, nesses tempos horrendos. Ouvia suas emoções dizendo da tristeza de não ter respirador para todo mundo. De mães gritando, quando recebiam a notícia, de filhos inconsoláveis. E, agora, era a vez dela. A filha morreu no mesmo hospital em que ela trabalha. No corpo sem vida, o útero seco engolia nada de um desmentir da natureza das coisas. Não é justo uma mãe enterrar uma filha. Alzira disse algumas palavras. Fez uma oração triste e bonita. Tudo muito rápido, como rápido foi o existir da vida de Fabíola. Da Fabíola que sonhava em ser enfermeira como a mãe, que brincava de medicar as bonecas, que ajeitava o quarto como se fosse um hospital de criança. O quarto ainda está lá com os brinquedos, sem compreender a ausência. As gavetas revelam pedaços de papel com vidas inteiras, fotografias das duas juntas, paninhos, bijuterias, cadernos e não sei mais o quê, parei de ver. Sobre a mesa do quarto, outros retratos, perfumes, maquiagem e uns bilhetes de amor. No espelho, grudada uma das tantas cartinhas da mãe, quando saía cedo para trabalhar e queria surpreender a filha. Meu Deus, e agora? Eu sei que, em toda a rua, mora uma dor, mas é a Antonia que eu conheço que, hoje, sente a dor mais doída do mundo. No rádio, dizem que já morreram mais de 300 mil pessoas. Eu pego a minha Bíblia e a aperto contra o peito. Fico em silêncio conversando com Deus. Ouço os comentaristas falando que demoramos para acreditar no vírus, na vacina, na ciência. Falam de outros países que cuidaram melhor dos seus filhos. Eu não entendo dessa brigaiada toda. Não concordo com quem concorda com a mentira. Falam de armas. Eu que sou da paz, fico intrigada. É disso que precisamos? Estou fazendo uma sopa para levar para Antonia. Eu sei que ela tem fome nenhuma, mas vou ficar perto dela, talvez sem dizer nada, talvez chorar doído com ela. Faço a confissão da sinceridade, o tempo vai aliviar um pouco, mas a vida sem Fabíola vai ser um jardim difícil de brotar beleza. Céus, é a Antonia cantando. “Acorda mulher, o dia está lindo”. Que horas são? Ufa, no meu caso, foi um pesadelo... Publicado no Jornal O Dia (RJ), 28 de março de 2021. voltar |
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