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OS CACHORROS TÊM LUGAR NO CÉU
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Os anos de alegria vão se desligando, e outros se ligam sem que possamos decidir. Do jeito filhote ao entardecer cansado, ele ocupava aquele mundo. Era preto como as asas da graúna e foi se esbranquiçando como acontece com as forças que se despedem." 

O sol rachava a caminhada no janeiro do Rio, e a prosa soprava uma brisa metafísica sobre os nossos entendimentos. Júlio e Breno, de assunto em assunto, estacionaram as emoções para falar de Kush.

Kush era um cachorro. Chegou tímido tateando os cheiros da casa. E da gata. Sim, havia uma gata, Taga. Taga parecia professorar os jeitos de Kush. Ele se movimentava quase que deslizando. E, se não a via,  escondida que gostava de ser,  procurava-a sem incômodos nos poucos cômodos onde moravam. Quem disse que cão e gata precisam brigar? Que precisam se estranhar?
 
Os anos de alegria vão se desligando, e outros se ligam sem que possamos decidir. Do jeito filhote ao entardecer cansado, ele ocupava aquele mundo. Era preto como as asas da graúna e foi se esbranquiçando como acontece com as forças que se despedem. 

Na caminhada, uma água para refrescar os pensamentos. E o pensamento nele prosseguia no dizer daqueles dois.  Ele gostava de gente. Esmerava-se em desfilar com elegância e olhava, em pose de atenção, para receber elogios. Os passeios com ele eram obrigação de amor. Nos movimentos de saída, ele já aguardava na porta, ensinando gratidão. Sua felicidade dissipava qualquer antônimo. E o dia começava bem. No pôr do sol, ele admirava como gente. E, como gente, olhava as expressões dos que sabem se expressar quando conseguem ver o espetáculo único de todos os dias. 

Júlio se emociona para falar da despedida. Pede desculpas. Eu digo, em sorriso, que compreendo o amor que eles nos dão e a dor de quando se vão. Conto dos meus cachorros que se foram. De um que partiu o ano passado. Do último abraço no tapete da sala, do último olhar, das primeiras lágrimas sem ele. 

Breno pede que Julio conte da missa. "Fomos à Igreja de São Judas Tadeu, e o padre, quando começou a ler as intenções, disse: 
- Missa de sétimo dia de Maria Antonia e de... me desculpem, mas tem um nome aqui que não consigo pronunciar. Deixa eu soletrar K U S H. Tem alguém da família?
E eu, com riso nervoso e os olhos marejados, expliquei que era o meu cachorro. E achei que ganharia uma reprimenda. Ocorreu o contrário, o padre me acolheu com sorriso. Tempos depois, nos encontramos na rua e ele se lembrou de mim e disse: "Viu que até o Papa Francisco disse que os cachorros têm lugar no céu?".

Algum silêncio nos encontrou, enquanto minha imaginação brincava de desenhar palavras. Como é bom encontrar pessoas que não têm medo de demonstrar os sentimentos. O que é o viver sem o sentir?
No mosaico dos sentimentos, encontramos recados todos os dias. Misteriosamente, eles aparecem tentando fazer desaparecer nossas insensibilidades. São trechos de vidas, são dizeres de encantamento, são silêncios reveladores.  Por isso presto tanto atenção ao que os outros me dizem. Abro os compartimentos da escuta para que histórias de amor me preencham.
Por pessoas, por animais, pelos dias, pelas causas. 

No fim da caminhada, nos despedimos e voltei para a vida imaginando Kush brincando em algum jardim das transcendências. E abanando uma alegria capaz de ultrapassar o invísivel.

Alegre, terminei o meu dia.


Publicado no Jornal O Dia - RJ, 24 de janeiro de 2021.





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