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Acadêmico: José Renato Nalini "Quem a conheceu pode testemunhar o quão gratificante foi assistir à multiplicidade de atuações a que se devotou com eficiência e entusiasmo."
Um 2020 de tanta tristeza tinha de acicatar ainda mais os corações já doloridos, neles impondo mais um ferimento: a morte de Anna Maria Martins em 26 de dezembro. A paulistana que nasceu em 28.11.1924, havia menos de mês antes completado 96 anos. Em plena e esfuziante atividade. Quem a conheceu pode testemunhar o quão gratificante foi assistir à multiplicidade de atuações a que se devotou com eficiência e entusiasmo. Fui privilegiado com sua amizade, que teve início na década de noventa e que se estreitou nestes últimos trinta anos. Era a companhia mais assídua e permanente de Lygia Fagundes Telles, a quem apanhava para conduzir até às sessões da Academia Paulista de Letras, sem registro de uma ausência sequer. Honrou-me com seu voto para integrar esse nicho intelectual que é a Casa de Cultura por excelência de São Paulo e se mostrou o paradigma do espírito acadêmico. Nunca se recusou a qualquer missão. Ao contrário, a todos os eventos para os quais era pessoalmente convidada, fazia questão de representar também a Academia. Ocupou, seguidamente, vários cargos na Diretoria e seu desempenho era algo inacreditável. Sua estirpe a fez conservar hábitos tradicionais e de há muito extintos num convívio que perdeu muito charme e glamour. Fazia-se presente a todas ocasiões em que a polidez se mostrava necessária. Lembrava-se das datas significativas, comparecia a todos os lançamentos de livro, palestras, conferências, simpósios e cursos. Estava ao lado daqueles que perdiam pessoas queridas, confortando-as. Não faltava às missas de sétimo dia. Paralelamente, cuidava de cultuar a memória acadêmica. Todos os artigos assinados por seus colegas eram lidos, comentados, elogiados e, recortados, passavam a integrar a hemeroteca da Academia. Era a gentilíssima provedora de um acervo que passaria desarquivado, não fora a sua delicadeza atenciosa. Delicadeza é um verbete que tipifica a personalidade de Anna Maria Martins. Sua elegância natural era eficaz lição de etiqueta sem rebuscamentos e sem afetação. Ao telefone iniciava a conversação a indagar se aquele era um bom momento, se não estaria a importunar ou se a pessoa chamada não preferiria atender em outra hora. Ninguém diria que aquela dama que irradiava um perfil armorial, tivera uma vida tão plena de lances românticos. Casou-se muito jovem e, viúva e mãe, viu-se alvo de uma arrebatadora paixão. Luís Martins, (1907-1981), escritor e jornalista carioca, vivia então com Tarsila do Amaral (1886-1973), que era prima de Anna Maria. Paixão correspondida, casaram-se e viveram juntos até à morte de Luís Martins, num acidente, em 1981. Ele foi cronista do Estadão durante 36 anos, assinando seus textos como L.M. A filha de ambos, também escritora, Ana Luísa Martins, resgatou a correspondência do pai com Tarsila e com a mãe, no livro “Aí vai meu coração” (Global Editora). Por sinal, Ana Luísa afirmou, sobre a mãe: ela “lutou a vida inteira para sair das convenções sociais com muita educação e delicadeza, mas fazendo o que queria”. Até há pouco, Anna Maria dirigia sozinha até Indaiatuba, para visitar a família. Estava sempre disposta e não se estranhava que numa noite chuvosa, daqueles temporais paulistanos, ela arrostasse a aventura de se locomover a qualquer canto longínquo da metrópole para abraçar um amigo solitário, a autografar mais um livro. Ela fez muito mais. Era excelente tradutora de Agatha Christie, Maurice Leblank, Anthony Berkeley, Heinriche Heine, Gerhardt Haptmann John Kenneth Galbraith e Aldous Huxley, entre outros. De sua autoria, publicou “A Triologia do Emparedado e outros Contos”, que a fez merecer o Jabuti, depois “Sala de Espera”, Katmandu e Retrato sem legenda. Ainda dirigiu a Oficina da Palavra na Casa Mário de Andrade, fazia funcionar o “Clube de Leitura” da Academia, nunca recusou integrar Júris de premiação em c rsos literários. Era amiga dos amigos, respeitava todos os seres humanos. Lealdade foi um lema de que não se afastou. A literatura foi outra de suas paixões. Mas é vã tarefa tentar retratar em algumas linhas o que foi Anna Maria Martins, uma expressão bem sólida daquilo que os paulistas um dia levaram a sério: o compromisso com a melhor herança dos costumes avoengos, o bom tom, a airosidade, o aprumo, o donaire, a distinção, a faceirice, a galhardia, o garbo, o donaire, que praticamente desapareceram, mesmo nas hoje impropriamente chamadas elites. A louçania e o verniz discreto da galharda postura de Anna Maria Martins a convertem no arquétipo do que deveria ser a mulher bandeirante. O conforto possível é que uma das missões de uma Academia é reverenciar seus membros, manter viva a lembrança deles. Recordar Anna Maria Martins constituirá a façanha de restaurar um verdadeiro guia de boas maneiras, de cuja leitura e prática se encontra tão carente a sociedade brasileira. Publicado no blog Fausto Macedo, Portal Estadão, em 29 de dezembro de 2020. voltar |
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