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Acadêmico: Gabriel Chalita E não é que cheguei aos cem anos? Ah, tempo fugidio. Tudo é um piscar de olhos.
E não é que cheguei aos cem anos? Ah, tempo fugidio. Tudo é um piscar de olhos. Nasci no dia 10 de dezembro de 1920. Não nasci no Brasil. Nasci no Brasil. Sou pernambucana, nordestina, mulher, sofredora das subjetividades humanas, complexa e livre. Escrevo para entender a mim mesma. Escrevo para mergulhar no meu interior e tentar enxergar, por entre os mistérios, um pouco de mim. E, assim, me revelo. E, assim, me descubro. E, assim, me transformo. Sou adepta das epifanias. Sem medo de ir adiante ou precisar retornar. Sou mãe por escolha, e, por escolha, compreendo que meus filhos pertencem ao mundo. A eles entrego a porção que me cabe de honradez, de retidão. O resto é com eles. Sofri os preconceitos e me tranquei mais de uma vez. Em noites indormidas, tentava entender o como nós, mulheres, éramos tratadas. Dizia à Lygia e à Nélida, escritoras como eu, que nos cuidássemos, que nos decidíssemos por adiar qualquer sorriso, para que nos respeitassem. Sorri mais para dentro do que para fora. No mesmo piscar, o tempo foi mudando e nós, mulheres, fomos nos deslocando dos alicerces, sem eles abandonar, para atingir os andares diferentes da construção humana. Imaginei chegar aos 100 anos escrevendo um mundo melhor. Sem as ervas amargas do preconceito, sem os machismos, sem as violências. Ledo engano! Os tratores estão por aí ameaçando a nossa jardinagem. Escrevi sobre homens monossilábicos. Que falta faz um dito de amor! Escrevi sobre mulheres em busca de amor. Sobre ovos quebrados, em um antigo bonde, querendo ser vida. Sobre os mistérios desafiadores que moram em um Jardim Botânico. Me fiz árvore, ramagem e raiz. Tive medo. Corri apressada em busca do ontem. Os futuros, quem os sabe? Morri cedo. Na véspera de um aniversário meu. Fiquei pensando no que fariam com o que deixei escrito. Inventaram coisas que eu não disse, em nome de alguma homenagem. Ora, por favor, recuperem a verdade. Sou Clarice inteira. Com minhas esquisitices e minha liberdade. Com minha calma e minhas larvas vulcânicas que incandescem no desejo de queimar a vilania, o inumano, a dissimulação. Amei até os últimos instantes dos meus respiros. Amei do meu jeito. Do jeito que pude. Do jeito que podem os que pensam no existir. Existi escrevendo o amor, em sua complexidade, em seus desvarios, em seu suor de inseguranças. Se ainda tenho um sonho? Leiam o que eu escrevi. Não como importância que eu tenha de ser citada. Não. Nada de vaidades. Leiam o que eu escrevi e exerçam o prazer silencioso do pensamento e me permitam usar, novamente, da epifania. Meu sonho é a redenção, é a transformação, é o acender luminoso da alma humana, tão cheia de amor. No meu centenário, aguardo um presente, mesmo que demore, uma decisão firme, inegociável, de nada fazer sem amor. Aí, sim. Aí, então, nos acalmaremos. Publicado no jornal O Dia - RJ, no dia 13 de dezembro de 2020. voltar |
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