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Acadêmico: José de Souza Martins País singular, de história lenta e de consciência política vagarosa, só nas eleições de novembro de 2020 a verdade das eleições de 2018 começou a ficar um pouco mais evidente. Nossa consciência política tende a ser consciência de desilusões e não consciência de possibilidades históricas de mudanças. Exige a revisão periódica de decisões sempre provisórias de um eleitor superficial.
País singular, de história lenta e de consciência política vagarosa, só nas eleições de novembro de 2020 a verdade das eleições de 2018 começou a ficar um pouco mais evidente. Nossa consciência política tende a ser consciência de desilusões e não consciência de possibilidades históricas de mudanças. Exige a revisão periódica de decisões sempre provisórias de um eleitor superficial. Naquele ano, de 2018, no cenário de nossa alienação política, Jair Bolsonaro foi o que sobrou. Elegeu-o o voto residual de um eleitorado órfão de referências para decidir. Ele personifica a desilusão num processo que já vinha de anos, de falta de alternativas abrangentes e transformadoras. É o que se pode inferir da soma dos votos nulos, brancos e das abstenções, os dos votos por omissão contra o conjunto dos partidos e dos candidatos. Os votos em ninguém. Mesmo que não incluíssemos os casos de impedimentos incontornáveis. Se compararmos os votos recebidos por um candidato com o número de eleitores que optaram por ninguém, o índice de decisão por votar no candidato vencedor, Lula, em 2002, foi de 1.9. Quase o dobro dos votos em ninguém. Já em 2018, o índice dos que votaram em Bolsonaro foi de 1,4 em relação à soma de votos em ninguém. Portanto, Jair Messias não foi o candidato que preenchesse o enorme buraco negro do cenário eleitoral brasileiro, representado pelo vazio do que um número significativo de eleitores não o considerou merecedor de seu voto. Muitos desiludidos não acharam que era ele a alternativa. Continuaram desiludidos como se viu nas eleições de agora. Nos dois turnos destas eleições, o buraco negro continuou aberto. Mas indicando opções opostas às de 2018. Em várias e importantes cidades brasileiras, os candidatos eleitos, ou colocados em primeiro lugar para disputar o segundo turno, tiveram menos votos do que a soma de brancos, nulos e abstenções. Em várias delas, a soma dos votos dos dois primeiros colocados é inferior ao número de brancos, nulos e abstenções Em Campinas, a soma dos três primeiros colocados é inferior ao número de eleitores que são contra todos. A margem de indefinições destas eleições cava um fosso maior ainda no cenário político ao expressar a não opção, nem pela direita nem pela esquerda. A polarização ideológica perdeu a eleição. O que explica porque dois terços dos candidatos que Bolsonaro apoiou abertamente foram derrotados. Uma indicação de afastamento dos eleitores em relação à sua ideologia esdrúxula e ao seu governo errático. Lula também perdeu ao se confirmar o significativo declínio da influência do PT no país e, simbolicamente, no chamado cinturão vermelho da grande S. Paulo. O partido elegeu apenas dois candidatos a prefeito nos nove municípios que o abrangem, os das cidades dormitórios, não os das fábricas. Área que se desindustrializou nas últimas décadas, o que anulou as bases de uma ideologia proletária da política. Ali surgiu uma poderosa camada de trabalhadores de classe média, mais identificada com posições políticas de centro. Isso é também derrota para Bolsonaro, refém da polarização ideológica protagonizada pelo PT, e que ele assumiu como tática política extemporânea. A grande revelação da nova realidade política do país, é o de uma nova esquerda, jovem, atualizada, fundamentalmente uma esquerda urbana e não proletária, com Edmilson Rodrigues, em Belém, Manoela d”Ávila, em Porto Alegre, e Boulos em S. Paulo. Uma esquerda cujo sujeito de referência é a cidade da urbanização patológica, a da pobreza resultante da voracidade de lucros rentistas da especulação imobiliária e da desregulação da renda fundiária urbana. A referência dominante já não é a classe operária. A votação de Boulos mostra que uma grande parcela da população paulistana tem da realidade social da cidade uma consciência crítica, renovadora e criativa, motivada por carências urbanas, carência de cidade e do que é próprio da civilização que as cidades criaram. Ele compreendeu isso. E não só por ser de esquerda. Muita gente de uma esquerda obsoleta não tem mostrado que é capaz de compreender o real e suas possibilidades. Os três nomes indicados parecem personificar a esquerda clássica no confronto com a esquerda popular e aparentemente ultrapassada de Lula. A vitória do centro não-bolsonarista, um retorno ao centro moderado de base local, tendente ao moderno, mas clientelista, indica um retorno à ordem e, de vários modos, a rejeição do bolsonarismo e do lulismo. A significativa eleição de Paes e a derrota do candidato bolsonarista e pentecostal no Rio de Janeiro, em face das abstenções, dos votos em branco e dos votos nulos, sugere a recusa da associação dos evangélicos com a direita. Sendo eles maioria religiosa no Rio de Janeiro, numerosos deles preferiram não apertar na urna as teclas que manteriam no poder o bispo do consórcio familiar fundamentalista e político de direita. Como outros julgaram não valer a pena sair de casa para votar no irmão de fé. A não reeleição do bispo Crivella no Rio é a da recusa de muitos protestantes e evangélicos do que, para eles, representa a negação da pureza do legado da Reforma e do republicanismo autêntico com ela identificado. E em disputa com o pensamento político retrógrado, os discursos de Covas, Boulos e Paes, indicam opção pela civilização contra a barbárie. Publicado em 04 de dezembro de 2020, no Valor Econômico [Suplemento Eu & Fim de Semana]. voltar |
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