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Acadêmico: Gabriel Chalita Eu pedi ao meu pai um jogo de carros de alta velocidade que, na época, vasculhava a nossa cabeça de criança.
Eu pedi ao meu pai um jogo de carros de alta velocidade que, na época, vasculhava a nossa cabeça de criança. Era sobre isso que falávamos, na escola, nas semanas que antecediam o natal. Os mais novos ainda criam em papai noel. Eu nada dizia. Longe de mim riscar do imaginário de quem quer que seja algum colorido de alegria. Havia um que escrevia cartas e que pedia o impossível, a volta da mãe, que, adoentada do desgosto do viver, abandonou a família. Subitamente, vi um mais velho dizer sobre a mãe de João. "Ela deixou o seu pai e vocês porque virou mulher da vida". O menino chorou abraçando o vazio de uma manhã de escola. E eu socorri. Na sabedoria dos meus 12 anos, despejei um anestésico de alma: "Quem conta apenas um pedaço da história de alguém despedaça a verdade e causa dor". Não sei de onde decidi aquele dito. Mas aprendi comigo. E guardei para mim a decisão de não expor uma única das tantas histórias que moram em uma pessoa para não roubar sua dignidade. Julgamentos apressados não compõem a minha vida de juiz. Percorro silencioso as páginas que trazem fatos que rasgam vidas e que esperam soluções. Peço a Deus com humildade que o poder de julgar não me acrescente superioridades, que não seja eu precipitado ou preconceituoso, que apenas devolva os dias de paz aos que, por ganâncias de outros, adoeceram na esperança. A verdade é difícil de ser encontrada em um mundo tão cheio de barulhos. Sei disso. Ouço nas audiências a dor e as dissimulações. Vou com a vigilância necessária de quem quer o certo, de quem teme o malfeito, de quem credita à justiça a certeza de dias melhores. Alguns dos meus pares desistiram do ofício que abraçaram. Falam como se o viver humano desmerecesse maior atenção. Julgam antes por descrença ou por preguiça. Eu não. Passo dias em releituras de um mesmo processo e em pesquisas do que outros dizem sobre as leis que já conheço. Não quero dar passos desprotegidos da verdade. Falava eu do pedido de criança ao meu pai. O tal jogo de carros de alta velocidade. Naquele natal, ganhei um par de meias. Quando abri o pequeno embrulho, disfarcei a decepção e agradeci. Meu pai, homem bom e com poucas condições de outros ofertórios, completou o presente com um abraço de amor e algumas palavras que ainda moram em mim: "Filho, um dia vou poder dar o que você merece". Chorei com ele e, novamente, um dito nasceu em mim: "Pai, eu preciso de meias, que feliz presente! Com elas eu terei o aconchego dos meus pés, para caminhar seguro por onde eu venha a decidir". Meu pai meneou a cabeça e repetiu uma frase para mim "Não sei de onde você tira essas coisas, meu filho amado". Meu pai morreu antes da minha formatura de advogado e não me viu ingressar na carreira de juiz. Minha mãe estava lá e também a mãe do João. Ela voltou para os filhos quando o pai morreu. João é meu colega na magistratura. Cuida da mãe com a arquitetura dos sentimentos mais profundos. Soube de histórias que desconfiava. A verdade vai se desvelando nos dias calmos, nos tempos que se seguem, na paz que vem da ciência de um amor não preguiçoso. Em minha cabeça, hoje, vasculham essas memórias que gosto de contar aos meus filhos. E que gosto de preservar para mim. O dia em que deixar de acreditar na humanidade ou na justiça, peço aposentadoria. Por enquanto, acordo cedo, calço as meias que me permitem um caminhar aconchegante e decido, no quinhão que me cabe, fortalecer a esperança nas pessoas de que o bem existe. Publicado no jornal O Dia (RJ), no dia 29 de novembro de 2020. voltar |
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