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Acadêmico: Gabriel Chalita Nélida não é mulher de reclamos. Gosta da vida como quem assinou um contrato com a escritura da felicidade.
A sexta-feira deixava claro que a semana já havia cumprido seu papel. Um frio desnecessário atravessava o início de novembro. E um sol me explicava que o belo mora no alto. Antes de uma sopa, cheia de quenturas, sentei em uma poltrona e abri o mais recente livro de Nélida, "Um dia chegarei a Sagres". Conheço a autora, há algum tempo, de textos e de ternuras. De comunhão com suas palavras e de admiração ao seu agir generoso no tema da humanidade. Começo a leitura. Os olhos vão enxergando palavras que vão significando sentimentos. Um nascimento dorido. Um filho sem mãe. Um avô cioso de seu ofício de apascentar a vida. E a simplicidade banhada por ventos de antiguidade. O menino precisava partir. O chão da estrada seria parte de seu impulso valente em busca de um tal Infante. Um que morou no passado, e um outro que por ele se permitiu ressurgir, no meio do caminho. No caminho de Nélida, não faltaram as tais pedras de Drummond. O braço alquebrado atrapalhou nos movimentos da escrita, os olhos com algum cansaço exigiram que a grande dama da literatura fosse escrevendo a mão. Como no passado. E, assim, as quinhentas páginas foram nascendo. Nélida não é mulher de reclamos. Gosta da vida como quem assinou um contrato com a escritura da felicidade. E, se havia pedra no meio do caminho, no meio da pedra encontrou Nélida caminhos tantos para dar curso ao seu romance. O viajante tem o nome de Mateus. O professor que palmilhou heroísmos em sua mente falou de Camões, de sua língua e de sua pátria. Experimento a sopa e agradeço a quentura do dia. O livro fica comigo. Aguarda uma pequena pausa. E me acompanha noite adentro. Durmo depois de Mateus ter chegado a Sagres. E acordo com a curiosidade própria dos que amam uma história bem contada. Mateus idealiza um amor. A tia forte, do amor idealizado, tranca o futuro dos dois. E um outro amor acontece no inusitado. E o desfecho é épico. As palavras dançam um som de Wagner, tão fortes, tão leves. A manhã de sábado me acompanha até a volta a Lisboa. No almoço, como ovos com arroz e feijão, e couve refogada, e penso no desfecho. Antes do despedir do dia, eu abracei Nélida ou o livro de Nélida ou a dignidade de Nélida. Quem é essa senhora que não tem medo de evocar, em um único livro, todos os sentimentos do mundo? Quem é essa escritora que elimina qualquer desnecessidade para que cada construção sintática se aloje na mente humana e cumpra o seu papel? Ouço nos textos o seu sonho de um país sem radicalismos. Em que, das dores, brotem possibilidades. Em que as possibilidades se tornem concretudes. A literatura nos deságua sentimentos para que nos fortaleçamos de repertório, de compreensões, de vontade. Tenho a vontade de que mais leitores surjam, de que menos superficialidades abatam nossa razão. Tenho a vontade de um mundo sem violência, sem desrespeito, sem precipitações nos julgamentos. O sol vai se despedindo mais uma vez. Amanhã, será domingo em mim e nas personagens de Nélida que pedem licença para permanecer. Eu autorizo. Será bom ficarmos juntos para espantar os frios. Publicado no jornal O Dia (RJ), no dia 08 de novembro de 2020. voltar |
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