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Acadêmico: Gabriel Chalita Eles dizem que tenho quase 90 anos. É muito tempo. Não acreditaria se não soubesse. Sei de muita coisa e de muita coisa não sei.
Eles dizem que tenho quase 90 anos. É muito tempo. Não acreditaria se não soubesse. Sei de muita coisa e de muita coisa não sei. Viemos de um outro país. Faz tanto tempo. No navio, eu tive medo. Uma doença, das que matavam sem qualquer aviso, tomou conta de mim. Se eu morresse na viagem, meu corpo seria lançado ao mar. Era isso o que diziam. Minha mãe, contrariando os palpites, cuidou de mim. Diziam que ela poderia, também, adoecer. Ouvia nada do que os alarmistas anunciavam. O amor de mãe não obedece aos sons que não sejam o do coração. Meu pai já conhecia o Brasil. E nos trouxe com ele para plantarmos aqui nossa vida. A despedida no porto do Líbano foi doída. Era adeus e pronto. E pranto. Na chegada, outra língua, outro clima, outros costumes. Dias difíceis. Éramos quatro. Minha irmã, um ano mais velha. Éramos eternos no amor. Inseparáveis. Fecho os olhos e nos vejo meninas de vestido andando pela praia da nossa infância, na Síria. Vejo a cozinha em que amassávamos o trigo e colhíamos sentimentos puros. Por que tudo passa? Choramos juntas, minha irmã e eu, as mortes. Um dia, meu pai já não estava. Tempos depois, após uma prolongada doença, foi minha mãe. Minha irmã chorava alto e eu pensava nos dias que viriam sem ele e, também, sem ela. No meu silêncio, a minha dor gritava. Demorei a me casar, ao contrário de minha irmã. Os nossos maridos, também, se foram. Ela teve os filhos. Eu não. Sim, tive. Seu filho mais novo brinca comigo que sou sua mãe. Desde sempre, ele gostava de livros e eu lia os livros com ele. Eram outros tempos. Brincávamos na areia da praia. Cantávamos músicas de acordar. E prosseguíamos acreditando nos afetos. Os dias vão descartando as folhas e outras vão surgindo, aguardando novas coragens. Eu era corajosa. Não sou mais. Coleciono medos, involuntariamente. Moro com meu sobrinho mais velho, desde a viagem da minha irmã. Às vezes, pergunto se ela morreu. Ele responde com amor. Fala que, um dia, estaremos todos juntos. Explica que a morte não é o fim. Mas eu me disperso e não ouço tudo. Viajo pela nossa infância. Pelos textos que eu escrevia. Sempre quis ser poeta, mas só publiquei em mim os sentimentos de todos os tempos que vivi. O sorriso da minha irmã era mais bonito do que o meu. Eu dizia e ela não desmentia. Nas despedidas e nas doenças, nos olhávamos com a destreza de quem vai vencer. E permanecer. Mas ela foi embora. Sem mim. É o que reclamo com quem tenta me dizer outra coisa. É o que digo na minha oração. Não que eu queira ir. Gosto daqui. Gosto das lembranças das nossas conversas. Dos dias em que acordávamos sabendo que estaríamos juntas. Que cozinharíamos juntas. Que reclamaríamos juntas de alguma nuvem teimosa e decidida em esconder nossa alegria. Ela gostava de festa. Eu menos. A festa era ser sua irmã. E logo é natal. Sem ela. Quando sonho com ela, é sempre sorriso. É isso um sinal? De que ela está bem? De que ela me vê, enquanto encontro seu cheiro nas lembranças de tantos anos? Rabisco em um papel que fica ao meu lado. Caço palavras. Ensaio outras. Agradeço o amor que me dão e retribuo. Durmo aconchegada. E acordo achando falta. Sei que é assim. Que todos os dias lágrimas despencam de quem fica, enquanto alguém vai. A saudade é um canto de amor. Canto na língua da minha infância canções de fé. E, assim, acalmo o dia. Ela está bem. Linda como sempre. Sem nuvem. Sem nenhuma dor. Lembro dos dias finais da viagem no navio, depois da doença ter ido embora. Lembro de nós quatro olhando a terra que, para nós, era apenas um mistério. Meu pai, minha mãe e nós duas e um mundo novo nascendo. E, do nada, me vem um sorriso de alegria. Sim. De um mundo novo nascendo. Ela está bem. Publicado no Jornal O Dia RJ, 20 de setembro de 2020. voltar |
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