|
||||
| ||||
Acadêmico: Miguel Reale Junior Tem retidão moral quem mente e acusa injustamente terceiros para se livrar...?
É fato notório que o presidente Bolsonaro é pessoa tosca, deseducada, nada afeito a qualquer etiqueta. Pelo contrário, orgulha-se de ser um atleta bronco e não um “bundão” que morre ao contrair a covid 19. Mas, além das grosserias proferidas contra jornalistas, tão ou mais grave foram as tentativas de desvirtuar a verdade. Com efeito, ao chegar à catedral domingo 23/8, jornalista de O Globo indagou: Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz? E o presidente respondeu ao jornalista: “Vontade de encher a sua boca de porrada”. No mesmo instante ambulante falava: “vamos visitar, presidente, a nossa feirinha da Catedral?”. Segundo vídeo falso, de site bolsonarista, com foto de Bolsonaro abraçado à sua filha, o Repórter teria dito: “Vamos visitar sua filha na cadeia”, ao que, então, o presidente reagiu: “vontade de encher sua boca de porrada”. Sites bolsonaristas difundirem inverdades, para salvar a cara do seu mito, é já habitual no mundo das Fake News. O grave está em o presidente, sabedor da falsidade inventada por apoiadores, ter reproduzido em seu canal do Youtube a versão mentirosa, sem legendas, com o título: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!”. O filho 02, Carluxo, compartilhou no Twitter essa versão de conteúdo falso. Não é a primeira vez que o presidente recorre à mentira para atacar jornalista. Vera Magalhães noticiou que Bolsonaro divulgara vídeo convidando pessoas a irem a ato contra o Congresso Nacional, no dia 15 de março deste ano. Bolsonaro, em live do Palácio do Alvorada e em sua página no Facebook, acusou falsamente a jornalista de ter confundido o vídeo no qual convocava para reunião contra o PT em 2.015 e o chamamento para o ato de 15 de março de 2.020, ambos em um domingo. Disse o presidente: “O vídeo abaixo chegou ao conhecimento da jornalista Vera Magalhães que, na sede de furo jornalístico, publicou matéria como se eu estivesse convocando ato para as manifestações de 15/março/2020. Ela, certamente por má fé, não atentou que o vídeo era de 2015, onde houve uma manifestação no dia 15 de março (domingo) daquele ano contra o governo do PT”, E completava o mandatário com a seguinte ofensa: “não sou da sua laia, esqueceu de ver a data. Trabalho porco precisa ter um pouco mais de vergonha na cara”. A mentira do presidente era inadvertidamente por ele mesmo denunciada, pois na live disse que o vídeo contava um pouco de sua vida: a facada. Ora a facada se deu em 2.018, portanto, o vídeo não poderia dizer respeito a manifestação de 2.015. Além do mais, no vídeo mostrava-se a posse de Bolsonaro em 2019. Ainda por cima, o ministro José Eduardo Ramos e o deputado Alberto Fraga confirmaram ter recebido de Bolsonaro o vídeo. Inverdades e acusações são marcas dos dois acontecimentos. O uso deslavado da mentira, como arma de defesa para tentar esconder seus atos que infringem a dignidade do cargo, une-se à deslealdade de fazer recair sobre outros as suas culpas. A intenção de mentir está em fugir da verdade para tentar se eximir de responsabilidade pelos atos cometidos, induzindo em erro os destinatários da mensagem, sem qualquer pudor (Batistelli. A mentira, trad. Fernando Miranda, S. Paulo, 1.945, p. 81) Nos casos, as mentiras têm perna curta, a demonstrar que no afã de ocultar a verdade e culpar terceiro, nem se fez a versão passar pelo crivo do raciocínio, parecendo ser fruto de um impulso, indicando, conforme Battistelli, ser a mentira quase patológica. A simulação da indignação, ao rechear a mentira com ofensas aos terceiros aos quais pretende culpar pelos próprios atos, é um truque grosseiro, um fingimento, a revelar antes pusilanimidade frente a possíveis aborrecimentos, do que a força que se pretende demonstrar. A ficção visa a proteger das dificuldades, aderindo à mentira como tábua de salvação, em recurso próprio dos medrosos (Battistelli, cit., p. 143), pois, ao contrário dos homens de coragem, não assumem os próprios atos. Mentir e acusar o outro é a reação comum dos fracos frente a uma pergunta que não sabem responder. Uma das hipóteses de crime de responsabilidade prevista na Lei n. 1079 de 1.950 está em proceder o presidente “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (art. 9o., 7). Aquele que age sem ser conforme a dignidade exigível para o exercício do cargo, desmoraliza a “própria imagem do Estado aos olhos do povo”, com perda da respeitabilidade. A retidão moral constitui o cerne da dignidade no exercício do cargo de primeiro mandatário da Nação. O professor Fábio Comparato, na peça que preparou para o impeachment de Collor, ensina que a lei introduziu na definição do delito a ideia central do decoro, que vem a ser temperança, domínio das paixões, honestidade, decência, pois “o que é honesto é decente e vice-versa”. E cabe perguntar, então: tem retidão moral aquele que mente e acusa injustamente terceiro para se livrar da assunção dos próprios atos que se revestem, por si só, da ausência do devido decoro? É mais uma pergunta que não quer calar. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 5 de setembro de 2020. voltar |
||||
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562. |