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A IMAGEM DO MEU PAI
Acadêmico: Gabriel Chalita
Era um domingo, eu me lembro. Nossa pequena casa de praia ficava perto de um morro que levava o nome de um santo, Santo Antônio.

Era um domingo, eu me lembro. Nossa pequena casa de praia ficava perto de um morro que levava o nome de um santo, Santo Antônio. Havia apenas um quarto, uma cozinha e uma varanda que ficava próxima ao segundo dos dois banheiros da casa. Dormíamos todos juntos. Meus irmãos, meus pais e, algumas vezes, meus avós. Em camas e beliches, descansávamos do dia de sol, do dia de mar.

Mas no domingo, em que nasce essa lembrança, o sol é que descansou. E, então, a chuva choveu o mundo inteiro. Raios clareavam a varanda. Do morro, desciam lágrimas de todos os santos, imaginava eu, menino ainda. E o medo foi me afogando. Minha mãe, com meu irmão no colo, também se encolhia querendo dizer que poderíamos ser varridos por aquela água sem fim. O barulho dos raios se seguiam a outros de alguns gritos de vizinhança. Não foi uma chuva qualquer. Também lembro que parte da cidade permaneceu inundada por alguns dias. Mas não é sobre isso que penso agora. A memória me oferece a imagem do meu pai.

Enquanto nos movimentávamos dentro e fora de nós mesmos, ele permanecia sentado em uma cadeira de balanço, olhando para as águas que caíam. Não havia medo nem pavor, tampouco desconsideração aos nossos sentimentos.Havia uma paz que o inundava da certeza de que, depois da chuva, o sol é ainda mais bonito.

Eu era pequeno e os detalhes me escapam, depois de tantos anos. Mas as duas faces daquele dia ainda me compõem. O medo e a esperança. O pavor e a serenidade. O caos e o equilíbrio. Meu pai era de muita oração e cultivava, em sua simplicidade, um plantio de bondades em sua vida interior. Era um jardineiro de almas. Sorria para espantar as mágoas, compreendia para viver melhor.

Suas frases ainda moram em mim. Com ele, aprendi a semântica da paciência. Ter paz diante da ciência do mundo. Ter paz, quando as chuvas pesadas nos impedem de ver o caminho. Ter paz, quando há luz, e o dia segue com a maré nos proporcionando caminhadas.

Conheci homens bons em minha vida. E conheci os outros. Muitas vezes, desisti de acreditar na bondade humana. Chorei as injustiças e as mentiras. Caminhei isolado com medo da humanidade. E não sem razão. Basta um abrir de olhos e a perversidade aparece, machucando, provando que algo está errado. As violências, os gritos ameaçadores, os preconceitos, o ódio industrializado pela fábrica das relações humanas.

Ainda hoje, choro a falência do amor nos rostos que usam as máscaras da hipocrisia e dos egoísmos. E, então, para que não me perca entre os perdidos, penso em meu pai. A serenidade na tempestade. O silêncio nos barulhos. A paz em qualquer situação.

Ele mora em mim. E me oferece sua melhor herança, ele mesmo. Os bens que ele me deixou usufruí e usufruo; os presentes, pude usá-los, um a um. Mas o que de mais precioso mora em mim é a sua imagem, íntegra.

Dentro de mim, ele me sorri, quando acerto e quando erro. Porque assim era ele. Acreditador dos sorrisos e não dos corretivos doridos. Jardineiro, já disse. Cioso de que seu estar no mundo era uma dádiva de Deus para plantar, para cultivar, para construir a paz. "A vida é um milagre", suspirava ele.

Chorei muito sua ausência, perdi o chão em sua partida. Hoje, há outro sentimento que me acompanha. Choro, às vezes, mas de emoção. De lembranças que vão me relembrando que, se filho de jardineiro sou, jardineiro tenho que ser. Planto palavras crendo que elas enfeitam o mundo com seu perfume e sacodem o mundo com seu poder.

Não sou ingênuo de achar que tudo vai bem. Dos morros que nos cercam, descem ódios que podem nos afogar. Mas a imagem do meu pai, a que mora dentro de mim, me diz que não. Que amanhã ainda haverá dia e que poderemos abraçar o abraço dos que permaneceram acreditando. Que flores brotarão de intenções corretas, que ventos nos trarão sentimentos novos.

Hoje é dia dos pais e recebo eu o presente de um filho com história. Gratidão a Deus pela árvore de onde nasci.

Feliz dia dos pais.

Publicado no dia 09 de agosto, no jornal O Dia (RJ).



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