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Acadêmico: Gabriel Chalita Não me venha um apressado dizer que felicidade não é verbo, que é substantivo. Eu sei a diferença. Mas quero pensar que a felicidade é verbo.
Não me venha um apressado dizer que felicidade não é verbo, que é substantivo. Eu sei a diferença. Mas quero pensar que a felicidade é verbo. Principalmente, no momento em que vivo. E sei, também, que sou aquilo que penso. Não pensem que sou teimoso. Se pensarem isso, o problema não mais me pertence. Já aprendi que não devo deixar os outros decidirem sobre mim. Não lhes dou esse poder. Mesmo quando me magoam. Mesmo quando dizem inverdades ou quando partem parte de mim, como acontece com os amores que se vão. Sou enfermeiro. E, um dia desses, fui ofendido. Não entendi muito bem. Não há entendimento para essas coisas. A violência é uma "não-ação" humana. Por isso gosto de pensar que a felicidade é verbo. É ação. Levanto cedo e limpo, de mim, as ofensas do dia anterior. E, também, as estranhas companhias do pensamento sem pensamento. Acordar é verbo. Despertar para o compromisso de prosseguir, também. Mesmo convivendo com a dor. O dia que me fez enfermeiro foi um dia de sonhos. O primeiro hospital. A primeira oportunidade de amainar a dor. De roubar um riso da escuridão da ausência de esperança. Chamar pelo nome cada paciente. Pisar com calma no seu frágil território. Ninguém quer adoecer, mas adoecemos. Ninguém quer receber uma notícia triste, mas recebemos. Consolei famílias inconsoláveis. Ouvi relatos repetidos de dias felizes que ficaram guardados na memória. Vi silêncios e compreendi. E é desse verbo cuidar que me ponho a expandir a alma. Volto cansado para casa, mas repleto de nomes, de histórias, de possibilidades. E descanso do dia agradecido por minha escolha. Mas esses dias têm sido mais difíceis. As famílias não podem amar os seus entes amados, porque o vírus é caprichoso. Chegou em silêncio e bagunçou o mundo. Os que se despedem do mundo vão sem despedidas. E alguns não tiveram tempo nem espaço para receber cuidados nos dias finais. Poderiam ter permanecido por mais tempo. Há verbos que vejo sendo conjugados à exaustão. Agredir, desrespeitar, desconsiderar, não amar. Sim, prefiro falar sobre a ausência do amor a exaltar a presença do ódio. Porque os que não amam conjugam o verbo ignorar. Ignorar que a felicidade está na ação. Na ação correta de cuidar de alguém, de fazer parte da engrenagem da bondade que perfuma o mundo, de conhecer e respeitar a ciência e a consciência de que somos humanos. Tenho ficado assustado com o que vejo. Onde foi que nos perdemos? Não sou historiador para falar, com detalhes, de outros tempos. Sou cuidador de vidas, já disse. Mas sei que a vida que vivo, hoje, me faz descrente da humanidade. É isso que temo. O verbo desistir vai contra todas as minhas crenças. Mas ser agredido por cuidar de vidas é impensável. Transformaram uma doença em um embate político. Políticos decidem sobre medicamentos e não os médicos. Mentir virou o verbo da moda. Espalham notícias incorretas. Acreditam no que querem. Imaginava que mito fosse uma palavra usada para os conhecimentos de antigamente ou para histórias que trouxessem verdades com delicadezas. Os mitos de hoje viraram paredes para deixar de ver o necessário. Nada de razão nas disputas, apenas disputas. Felicidade é verbo, sim. Eu preciso acreditar nisso para não desistir do que dá sentido a minha vida. Vou colocar nas peneiras da paciência as sujeiras que vêm dessas pessoas que agridem e vou continuar fazendo a enfermagem do mundo em cada leito em que encontro alguém que, de mim, necessita. E, quando me aproximo, sei do poder que tenho de abrir as janelas de um dia bom, de acalmar as confusões que o isolamento traz, de dizer que amar é o mais lindo dos verbos. Foi bom escrever. Assim converso comigo e me destravo dos desânimos. Daqui a pouco, vou para o hospital, vestido do que tenho de melhor. Do que há em mim e do que aprendo, quando conjugo verbos corretos. Vou fazer felizes os que cruzam meu caminho. E jamais vou deixar os infelizes me ditarem o rumo. Entendem por que é verbo? Publicado no dia 24 de maio, no jornal O Dia (RJ). voltar |
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