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SILENCIOSO ANIVERSÁRIO
Acadêmico: Gabriel Chalita
As badaladas do sino da Igreja, perto de casa, rasgam o silêncio. Antes de morar na grande cidade, vivia os dias em um interior, entre montanhas. Também lá, ouvia sinos. Também lá, a Igreja me apontava para o Céu e me lembrava o essencial.

As badaladas do sino da Igreja, perto de casa, rasgam o silêncio. Antes de morar na grande cidade, vivia os dias em um interior, entre montanhas. Também lá, ouvia sinos. Também lá, a Igreja me apontava para o Céu e me lembrava o essencial.

Na minha infância, os aniversários eram felizes. Havia o constrangimento de não saber onde colocar as mãos quando cantavam, na antiga escola, o antigo parabéns. Tímido, disfarçava.

Chegava em casa, e minha mãe esperava sorrindo no topo da escada que tinha que subir para entrar pela porta da sala. Na sala, meu pai, e um fogaréu de gentilezas para me aquecer e iluminar. Meu Deus! Quanta saudade eu sinto do meu pai! E as surpresas. E os dias com sabor de comida de mãe e de avó. O fogão à lenha. A conversa longa. Os beijos e abraços sem pressa. Hoje, tudo é apressado. Ou melhor, era, antes da pausa.

Na infância, eu, eufórico, acordava antes do sol para esperar as festas. Esta semana, acordei antes também, mas de tristeza. A tristeza sempre foi minha companheira, mesmo em dias felizes. Sempre tive conversas comigo sobre as dores da humanidade e as minhas próprias, sobre a finitude e as bestialidades que corroem as pessoas.

Sou dos que se emocionam, dos que choram sem outras preocupações a não ser a da sinceridade. Sou dos que reconhecem as cicatrizes tantas que as feridas foram deixando de herança. Na minha alma, elas convivem, e convivem com o perfume dos amigos que fui conquistando. No ano passado, eles estavam comigo. Cantavam comigo canções de gratidão e de esperança. Sempre gostei dessas palavras que me remetem ao passado e ao futuro. Mas tenho receio, também. De viver olhando para trás ou esperando demais o que de mim não depende. Sei que é o presente que me deve atenção. E o presente bom e belo é capaz de eternizar o que é efêmero.

Antes do dia do meu aniversário, fui ficar com minha mãe, que há muitos dias se recupera em um hospital. Nos olhamos como sempre. Brinquei com ela dizendo que as dores do parto já deviam estar incomodando; no dia seguinte, eu haveria de nascer. Ela sorriu, disfarçando a sua dor. Ela pediu que eu deitasse com ela. Eu sorri. Disse que não era possível. Ela explicou que, se eu estava dentro dela, poderia deitar. Tempos estranhos estes em que nem beijos singelos podemos dar. Brinquei com os seus cabelos, cantei alguma canção e esperei que ela adormecesse para partir. Minha sobrinha ficou com ela.

Na madrugada, eu estava sobressaltado. Não sou o único a sofrer nessa pausa. As cidades e suas ruas sem ninguém. As mais lindas construções que eternizaram a ação humana sem ninguém. As salas, onde a arte do teatro, da música, da dança elevam a humanidade, sem ninguém. As escolas, onde os futuros se abrem, sem ninguém. Mas ali estava eu, recebendo o meu aniversário em silêncio. O dia seria como todo dia. Gosto do dia com sabor de todo dia. Mormente quando os que amam podem me abraçar.

Nada de abraços. Nada de encontros desinteressados. A boniteza da amizade está na ausência de interesses. Nada de conversar com proximidade. As máquinas, que a humanidade inventou, estão sendo úteis. Minha tia, que tanto amo, me liga com a ajuda de quem com ela vive. Nos vemos ao longe. Enquanto minha mãe está no hospital, o telefone fica com ela, no mesmo interior de onde vim. Então, na chamada, aparece o nome da minha mãe. Choro e rio. Minha tia diz coisas engraçadas. Os anos lhe trouxeram mais humor. E o dia melhora. Os vazios persistem e o dia piora. As lembranças ocupam bom espaço e a reza para que, no ano que vem, minha mãe esteja comigo, em casa, rindo juntos de mais uma montanha que tivemos de subir para ver o belo.

Belo é viver. Com ou sem as pausas, com as badaladas dos sinos da infância ou as badaladas do sinos dos anos que foram se acumulando.
Belo é viver, mesmo neste silencioso aniversário.

Publicado no dia 03 de maio, no jornal O Dia (RJ).





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