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Acadêmico: Gabriel Chalita "Foi ontem, por isso estou ainda anuviado. Um sorriso lindo, um pedido de amor e uma desatenção. É assim que me lembro. Sei que posso corrigir. Há muito a ser escrito em nossa história. Mas é bom que eu sofra e que, sofrendo, aprenda. É assim que vejo o sofrimento, uma escola para lapidar a alma."
Foi ontem, por isso estou ainda anuviado. Um sorriso lindo, um pedido de amor e uma desatenção. É assim que me lembro. Sei que posso corrigir. Há muito a ser escrito em nossa história. Mas é bom que eu sofra e que, sofrendo, aprenda. É assim que vejo o sofrimento, uma escola para lapidar a alma. Minha filha não tem ido à escola como tantas filhas e filhos de tantos que aguardam essa pausa passar. E, na pausa, temos convivido mais. Ver o seu correr divertido já faz com que eu esqueça os problemas nada divertidos que preenchem boa parte do meu dia, mesmo em casa. Minha mulher vê um mundo mais leve do que eu. É da paciência. Eu sou da pressa. Não sei se essas palavras são antônimas. Sei que não desacelero, mesmo em casa. Foi ontem, como eu dizia. Um dia em que elevei a voz, mais de uma vez, em reuniões intermináveis à distância. As irritações foram se avolumando. O sistema caía. Caía a minha calma de ter de dizer, mais de uma vez, a mesma coisa. Por que não praticam o ofício da atenção aqueles que trabalham comigo? Por que se distraem com outros afazeres? Dia difícil foi ontem. E, súbito, ela chegou com a alegria dos que ainda engatinham na vida. Reparei rapidamente os cabelos, os cachinhos, as fitas tão bem colocadas. Reparei na vontade de estar comigo e reparei na decepção diante do som do meu "não". "Papaizinho amado, vem brincar um pouco comigo". Meu silêncio não a incomodou. Os meus olhos que tanto repararam voltaram para a tela, enquanto outros sorviam a minha impaciência. "Papai, conta uma história para mim". "Agora não dá, filha. Pede para sua mãe". E não mais olhei. Deixei aquele pedaço de ternura olhando sem ser olhada. Ela ainda ficou alguns instantes aguardando que eu mudasse de ideia. Eu via que ela me olhava, mas eu não correspondia o seu olhar. Como fazemos, quando não queremos ser incomodados. Meu Deus, onde cheguei?! Minha única filha não pode ser um incômodo. Meu coração acelerou. Eu quis que ela saísse logo. Acalmei, quando ouvi aquela mesma voz, que me faz querer viver, chamando "mamãe". Os alívios duram pouco, quando não fazemos o que devemos. É isso o que sinto hoje. Despertei antes do dia. Fui ao quarto onde ela dorme sorrindo. Os seus sonhos ainda não conhecem solavancos. Fiquei sentado admirando. O cheiro do café foi preenchendo. Minha mulher se aproximou e me beijou com o gosto de uma manhã de outono. Uma indiscreta lágrima deu alívio aos meus sentimentos. Abracei a minha mulher e comentei sobre a riqueza que era viver com as duas. Ela concordou com a cabeça e com o sorriso. Deixamos juntos o quarto. Enquanto arrumávamos o que haveríamos de comer, disse sobre o ontem. Ela apenas riu e disse que não tinha importância. Eu discordei. Ela insistiu "Você estava trabalhando, ela compreendeu". Não entendo das pedagogias da compreensão. Das idades em que se sabe uma coisa ou outra. Sou dos números, dos negócios. Não. Não quero pensar assim. Sou pai. E não quero autorizar o tempo a passar sem as escolhas corretas. Pareço estar exagerando. Não cometi crime algum. Mas prefiro pensar assim, se não prestar atenção agora, desperdiçarei os dias do seu crescimento. Lembro de amigos que assim dizem. Que, quando viram, os filhos já estavam prontos para o voo. E que o silêncio da ausência deles em suas casas tinha cheiro de saudade. Ela acordou e veio correndo para a cozinha. Me deu o abraço dos que nada cobram. Olhou nos meus olhos e pediu colo. Eu consenti. Eu a apertei tanto que ela brincou soletrando uns "ais". "Estou sendo esmagada igual à história dos passarinhos". "Quer que eu conte uma história"? "Quero, papai. A mesma, por favor. Quando o pai salva o filhotinho". "Eu conto, minha filha amada". Minha mulher brincou dizendo que havia outras histórias para serem contadas. "Só mais uma vez, mamãe. Gosto tanto do final. Fica todo mundo feliz". E o sol, sem preguiça, atravessava a janela. E um calor bom tirava o frio da noite e dos pensamentos de ontem. Eu e as minhas mulheres comendo histórias e pão com manteiga, bebendo vida e um café perfumado. Sei que o dia não será fácil. Na minha cabeça, os problemas continuarão a conversar. Mas sei, também, que agora é hora do poético encontro. Da quentura dos sentimentos. Do amor. Seguirei amando depois. Será um dia melhor. Publicado no jornal O Dia (RJ), no dia 26 de abril de 2020. voltar |
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