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Acadêmico: Gabriel Chalita Saudade é um sentimento que abre a alma. Definitivamente. É como se o presente me trouxesse obrigações de fechamento. É como se a árvore, sabedora de tantos afazeres, de sombras, de pássaros descansantes, de flor e fruto, se esquecesse da raiz. A saudade é a lembrança da raiz. De onde vem o nosso alimento, dos alicerces da nossa construção. Saudade do meu pai e de seus dizeres que acalmavam o dia.
Saudade é um sentimento que abre a alma. Definitivamente. É como se o presente me trouxesse obrigações de fechamento. É como se a árvore, sabedora de tantos afazeres, de sombras, de pássaros descansantes, de flor e fruto, se esquecesse da raiz. A saudade é a lembrança da raiz. De onde vem o nosso alimento, dos alicerces da nossa construção. Saudade do meu pai e de seus dizeres que acalmavam o dia. Eu era pequeno, quando fomos à cerimônia da quarta-feira de cinzas. Igreja repleta dos que, dias antes, brincavam o carnaval. Uma mulher explicava ao filho, que parecia estar ali sem vontade, que era uma obrigação: "Quem pula carnaval tem que colocar as cinzas". Eu não entendi. Olhei para o meu pai que, com o Pai, conversava de olhos fechados. Peguei em suas mãos e esperei. Ligados pelo amor, ele abriu os olhos e sorriu para mim. Era lindo o sorriso do meu pai. Quis entender. Perguntei sobre as cinzas. Ele beijou as minhas mãos como se dissesse que, no tempo certo, eu saberia. Fomos à fila, um a um o sacerdote colocava as cinzas e nos dizia que lembrássemos que somos pó e que ao pó haveríamos de voltar. Continuei sem entender. A mãe e o filho, que ali estava a contragosto, também receberam as cinzas. E também os outros. Tive coceira na testa, mas não sabia se era permitido ou proibido tocar onde as cinzas descansavam. Fiquei olhando para o meu pai. Uma cruz o marcava. Olhei para frente da Igreja, uma cruz recebia um corpo de homem que simbolizava o amor do mais belo dos homens por nós. Era isso que eu havia aprendido com uma senhora que nos catequizava. Missa terminada, fomos para casa. Minha mãe estava cuidando do meu irmão. Padecia ele de alguma doença que logo foi embora. Chegamos. Ele beijou a esposa com a delicadeza de todos os dias. Retirou um pouco das próprias cinzas e fez o sinal da cruz no filho e na mulher. E eu, então, repeti o gesto. Assim, consegui coçar a testa. E voltei a perguntar o significado. Meu pai não era um profundo conhecedor das teologias, mas era um praticante do mais lindo cristianismo. Fé e obras. Sua oração era como chuva em dias secos. Era lindo de ver. Os olhos se fechavam para que o sorriso explicasse que ele estava em paz, que nós estávamos em paz. E os seus feitos, nos cotidianos, demonstravam que funcionava. Nada de indelicadezas. Nada de perversidades. Meu pai era um homem que testemunhava que o bem traz felicidade, mesmo em dias frios. Deu a explicação que pôde. "Humildade, meu filho. Todos nós nascemos e todos nós iremos morrer". Mas e as cinzas? E ele repetia me convidando a ser bom. Aprendi, depois, que humildade vem de "humus", terra. Viemos da terra. Da mesma terra. Somos partes de um mesmo sopro. O sopro que gera a vida e que dá à vida a liberdade de existir. E de ser ou não humilde. Depois, aprendi a ler poemas. Na Tabacaria, Fernando Pessoa começa dizendo que "não sou nada, nunca serei nada", e depois prossegue "a par isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". Meu pai tinha todos os sonhos do mundo, por isso sorria tanto. Gostava de construir casas e amizades. Falava manso para não incomodar. Andava devagar para não apressar os que já estavam cansados, abria o dia agradecendo em oração. Faz tempo que ele se foi. Mas não sou das espécies de árvores que se esquecem da raiz. Não sou nada e sou um sonhador. Ou tento ser. Na quaresma, ele nos ensinava a arte da espera e da preparação. Não é fácil esperar, porque temos o errático hábito de querer dominar o tempo. E a preparação exige a tal humildade, tão esquecida nos dias de hoje. Ontem, eu era criança e aprendia. Hoje, eu tento reaprender o que acabei esquecendo. Ah, dias intensos. Ao contrário de meu pai, ando apressado e, por vezes, desperdiço o que há de melhor na vida. Meu pai tinha mãos grandes e nelas cabia toda a generosidade do mundo. As cinzas não servem, apenas, para quarta-feira de cinzas. Todo dia é dia de lembrar que não somos nada e que, ao mesmo tempo, podemos sonhar. E que, sonhando, mudamos o mundo. Minha alma está aberta. Sentimento bom esse que resolveram chamar de saudade. Publicado dia 01 de março, no jornal O Dia (RJ). voltar |
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