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Acadêmico: Gabriel Chalita Sou eu mesma quem abre o salão. E não é de hoje. Desde os primeiros dias, quando ainda brincava nos primeiros cortes das primeiras amigas que se arriscavam comigo. Hoje, tenho duas assistentes. Que cortam com afinco. Foram aprendendo. Como tudo na vida, o tempo vai limpando os exageros e deixando o que importa.
Sou eu mesma quem abre o salão. E não é de hoje. Desde os primeiros dias, quando ainda brincava nos primeiros cortes das primeiras amigas que se arriscavam comigo. Hoje, tenho duas assistentes. Que cortam com afinco. Foram aprendendo. Como tudo na vida, o tempo vai limpando os exageros e deixando o que importa. Gosto de acender a beleza nas pessoas. Enquanto lavo os cabelos, vou lavando as ideias. Deixo que falem. Ouço sem pressa. Vou concordando nos inícios. É importante, o tempo me ensinou. E, aos poucos, vou colorindo com algum novo cenário os tantos dramas que ouço. Há uma troca de confiança. Nada digo de uma à outra. Os mexericos sempre povoaram lugares frequentados por muitas pessoas. Mas eu tive uma avó que nos ensinava contando histórias e plantando moral em nossas mentes infantis. E uma delas era sobre o amor que se partiu em pedaços por causa de uns diz-que-diz-que invejosos. Minha avó não nos explicava as histórias. Contava e dava uma pausa. E nos olhava como acreditando que, o resto, perceberíamos sem dificuldade. A vida é difícil. Sempre soube. Não vou, aqui, abrir a minha caixa de lamúrias. Teria tantas. Tantas sujeiras vieram incomodar os meus dias. Algumas não se foram com facilidade. Não inventaram um shampoo mágico que desanuviasse os dias ruins. É preciso ir lavando. Isso, sim. Nada de acúmulos. Nem de posses nem de sujeiras. Ouço histórias de pessoas apegadas. Bobagem. Nascemos nus. Apenas com um sopro de possibilidades. O resto era para irmos ajeitando o nosso estar na vida. Não para nos preencher de indelicadezas nem de pesos que só têm a função de atrapalhar. A mente é assim, também. Se não prestarmos atenção, os dias vão se afundando em medos e em traumas de outras experiências que nos diminuíram. O que digo, quando opinião me pedem, é que tentem aproveitar os erros, as machucaduras para o fortalecimento e não para a desistência. Se a traição foi na amizade, serviu apenas para a persistência no propósito de nunca trair. Se o amor doeu demais, serviu para tomar cuidado para não criar dor em quem se ama. Se a humilhação veio de onde se ganha o pão, que o aprendizado seja o de não pisar sobre o futuro de ninguém. E é isso. O resto é colecionar sujeiras. Estou perto de completar 60 anos. Não sou de inventar uma outra idade, mas garanto que pareço muito mais jovem. Talvez, seja a minha alegria. Talvez, seja o meu hábito de limpar a mente e de autorizar o novo dia a vir sem medo. Os traumas de ontem desautorizam a chegada dos amanhãs. E eu gosto de pensar que amanhã é um novo dia. E gosto de abrir o meu salão para trabalhar com os embelezamentos. E gosto de dormir cansada e de rir de algumas histórias estranhas que ouvi. Meu marido que se aposentou, há pouco, ensaia outro trabalho. Resolveu aprender carpintaria artística. Não sei se é assim que se diz. Mas ele fica esculpindo umas cadeiras com detalhes de amor. Ele desenha, nas mesas, espaços de encontros. Fica horas imaginando e, depois, parte para a ação. Semana passada, ele estava criando umas sombrinhas estilizadas. Disse que seria bom presentearmos as melhores clientes do salão para que pudessem se proteger das chuvas com bom gosto. Tudo em casa é de bom gosto. Não. Não me peçam que seja modesta. Sou honesta. O que temos foi escolhido. A nossa história foi uma escolha também. Também nós, meu marido e eu, tivemos que limpar muitas sujeiras. Brigamos, algumas vezes. Chegou um dia em que desistimos de desistir e resolvemos que estar juntos era melhor. Se um briga, o outro aguarda. Quanto aprendizado mora em alguns instantes de silêncio. Não se fala nas brasas. Elas queimam. Machucam, se insistirmos nelas. Mas, depois, se enfraquecem. E, aí, basta que se limpe as cinzas. Nossa casa é branca, assim como o salão. E há quadros pendurados nos lembrando de paisagens belas. As fotos que nos enfeitam são felizes. Momentos assim devem ser eternizados. Os outros, que passem como passam as águas que limpam os cabelos e preparam um penteado novo. Amanhã, é dia de casamento. Agenda cheia. Conversas e esperança. E, à noite, vou a um baile com o meu marido. Aqui mesmo no bairro em que vivemos. E, depois, espero que, mais uma vez, ele me surpreenda. Publicado no jornal O Dia (RJ), 09 de fevereiro de 2020. voltar |
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