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A DESPEDIDA DO OLHAR
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Nos olhamos, ontem, pela última vez. Quando ele chegou, tão pequeno, eu não imaginava o quanto aquele olhar marcaria minha vida."

Nos olhamos, ontem, pela última vez.
Quando ele chegou, tão pequeno, eu não imaginava o quanto aquele olhar marcaria minha vida.
Foi um amigo que me trouxe. Era uma festa de aniversário. E ele ficou. Comigo. Visitando todos os tipos de dias. Consolando as partidas que tive. E não foram poucas. Brincando de me fazer rir, quando as nuvens teimavam em esconder a felicidade. Silencioso, compreendia as dores humanas. E se esforçava para explicar que sempre há algo mais.
Agora, enquanto dedilho algumas palavras sobre ele, que falava pelo olhar, fico lembrando da sua patinha interrompendo as escritas para pedir carinho. E eu dava. Parava o texto e testemunhava como é bom se sentir amado. Livremente amado. Sem exigências. Sem pequenas ou grandes raivas. Sem jogo nenhum. Seu jogo era surpreender com seus pulos, suas lambidas, seu estar ao lado.
Viajávamos juntos. Eu dirigia e o via me vendo do banco de trás. Chegávamos juntos aos destinos. Qualquer destino para ele estava bom, desde que estivesse comigo. Qualquer canto era um canto do brincar.
Nos dias de doença, ele comia na minha mão. E me olhava, agradecido.
Um dia, chegou uma irmãzinha, vinda da rua, machucada, Princesa. Ele olhou. Virou os olhos. Estranhou. Olhou novamente e a acolheu. Depois, veio outra, Serena. Ele, também, acolheu. Sabia que o seu espaço era sagrado. E nem se perturbava quando eram elas que decidiam dar as ordens.
Como era bom viajar e ver os três juntos. Como era bom chegar em casa e ser recebido em festa. Como era bom acordar o dia com os barulhos das patas e das alegrias.
Nos dias que antecederam sua partida, ele não estava se sentindo bem. Costumávamos nos deitar no sofá para ver filmes. E eu tinha que fazer carinho. Ou isso ou ele reclamava emitindo sons de exigência. Como ele não estava bem, não conseguiu subir. Deitei, então, no chão e nos olhamos. Tiramos juntos nossa última foto.
Nos inícios, ele caminhava muito rápido. E eu ralhava com ele. Tentando explicar como se deve passear. Eu não queria que fosse rápido. Por que esses seres de amor vivem tão pouco? Por que partem, assim, nos deixando partidos?
Suas últimas caminhadas eram preguiçosas. Mas ele gostava. Amava o seu passeador. Que também esteve na despedida. Obrigado, Denis.
Lu e Edivânia são as meninas que comigo vivem. Hoje me olham tentando entender. Sabemos que as finitudes fazem parte do que somos. Que saber despedir é prova de compreensão da vida. Mas é difícil. É difícil dizer adeus. É difícil encontrar os vazios dentro da gente e dizer a eles que, daqui a pouco, a dor vira saudade.
Olho as fotos e remexo minhas lembranças. Maria, a doce, tenta me consolar.
Vittorio gostava de água, como todo labrador. Entrávamos juntos no mar. E juntos nos secávamos no sol companheiro do dia. Nas piscinas, ele jogava água e se debatia com gratidão.
Minha mãe, que o teve ao lado tantas vezes, perguntou por ele. "É o cachorro mais doce que eu já vi, meu filho".
Barriguinha ao ar e o pedido de carinho. Foi a última vez. O filme passava e eu desligava a atenção para ficar com ele. Algo me dizia que era uma despedida. Eu havia acabado de voltar de viagem. Voltei antes. Vi o ano entrar perto do mar e quis voltar. Estava triste. Estou triste. Mas estou agradecido por ter aprendido que nenhuma criatura passa por acaso nas nossas vidas.
Não tenho vergonha de chorar. Nem de dizer que choro. Enquanto escrevo, agora, choro. Paro um pouco. Viajo pelo tempo. Volto. Princesa e Serena me olham e tentam preencher. Elas estão tristes, eu sei. Olham para a porta da entrada imaginando que ele foi apenas dar um passeio. E que, daqui a pouco, voltará, grandalhão, fazendo barulhos, buscando seus bichinhos, brincando de viver.
Vai ser difícil para todos nós, eu sei. A dor de agora não apaga os anos de alegria. Agradeço. E prossigo. E termino com um único intento, compartilhar um pouco do aprendizado que tive com o Vittorio. Se podemos dar amor, se podemos brincar de fazer festa, se podemos estar juntos, por que optar pelo desprezo, pelo ódio, pela ausência?
Vittorio, você foi uma linda presença na minha vida. Obrigado, amigo. Um pedaço de mim se foi ontem, com você. E um pedaço precioso seu vai ficar para sempre em mim. Descanse em paz.

Publicado no dia 12 de janeiro, no jornal O Dia (RJ).




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