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Acadêmico: Gabriel Chalita "É mais um dia de aniversário. E ele não está. Já se foi há algum tempo. Meu pai não mora comigo, nem em casa nenhuma. Mora onde moram aqueles que esculpiram vidas com a própria vida. Era ele um cuidador de gentes. Se há moradas na casa do Pai, preparadas para quem amou, é lá que ele está. E é aqui, também. Em um turbilhão de recordações. De ditos que ainda ecoam dentro de mim."
É mais um dia de aniversário. E ele não está. Já se foi há algum tempo. Meu pai não mora comigo, nem em casa nenhuma. Mora onde moram aqueles que esculpiram vidas com a própria vida. Era ele um cuidador de gentes. Se há moradas na casa do Pai, preparadas para quem amou, é lá que ele está. E é aqui, também. Em um turbilhão de recordações. De ditos que ainda ecoam dentro de mim. Sou carente, confesso. Abraço lembranças e fico em silêncio, pensando. Olho o passado, com alguma frequência, e cultivo a saudade sem melancolias. O tempo vai se esquecendo de que gostamos de permanecer e, quando vemos, não podemos mais ver. Não com os olhos. Vejo meu pai em mim em gestos que aprendi. Gostava, quando criança, de brincar com suas mãos. Grandes. Tenho eu mãos grandes, também. Gostava das histórias que ele me contava. Gostava de quando ele ria das palavras que eu inventava. Mas o que eu mais gostava era da forma com que ele tratava as pessoas. Meu pai era um homem bom. Exerceu ele, tantas vezes, o ofício de curar destinos, de espalhar belezas, de ouvir por amor. Quando ele morreu, eu sabia que não era a morte suficientemente forte para terminar um sentimento tão lindo. Quando ele morreu, abracei minha mãe como quem busca um poder de amaciar a dor. E choramos sem pressa. Hoje, acordei pensando nele. Mais uma vez. Na antiga loja que tínhamos, eu o observava observando as pessoas. Havia uma mulher que, invariavelmente, fazia perguntas e narrava histórias e nada comprava. E ele ouvia. Sem exigências práticas. Apenas ouvia. E compreendia que ela estava ali para aliviar a solidão. Um outro foi explicar sobre uma dívida não saldada, e ele, pacientemente, acalmou-o, explicando que esperaria. Quem faz isso? Quem compreende. Demorou meu pai a se casar. E, quando se casou, espalhou romantismos sem economias. Minha mãe, ainda hoje, recorda-se dos gestos daquele cavalheiro, daquele viajante que a viu em uma calçada e decidiu que era com ela que haveria de aquecer a vida. Não sei, se há, ou não, essa história de alma gêmea ou de amor único, só sei que, desde o início, eles se amaram. Nas diferenças. E, no encanto da unicidade, fizeram a viagem juntos. Até o dia da despedida. A casa da minha infância já esteve cheia de tristeza e já viveu pintada de alegria. Morreram irmãos meus. Morreram os pais dos meus pais. A morte nunca vem sem estranhamentos. Morreu uma Rosa que esteve sempre a cuidar de nós. É difícil nos acostumarmos às despedidas. Preferimos sempre as chegadas. Por isso há tanta festa quando alguém vem. Um filho vem. Um amor vem. Doce lembrança dos primeiros beijos em uma pessoa amada. Do aguardado reencontro. Minha mãe fala da timidez daquele tempo. Do namorar acompanhado. Do sonhar com que o dia cumpra o seu dever e o entardecer traga ele de volta. Mesmo que com os pais sentados juntos na sala de estar. Estavam ali desenhando um amanhã, com os olhos, com os sorrisos e com um desejo de permanência. Nos aniversários do meu pai, havia muita movimentação. Minha mãe sempre gostou de festa. Inda mais da festa do seu amor. Era bonito de ver os dois sendo um. E cada um sendo o melhor que podia para que os dois fossem felizes. Ele ria do nervosismo dela. Ela brincava de dar ordens. Ele brincava de obedecer. E assim fui crescendo. Teve um ano que eu dei a ele um livro de presente. Sobre a sua história. Escrevi com o teclado dos sentimentos. E ele gostou. E ele chorou. E ele, novamente, leu e se viu. Dor a dor. Frio e flor. Estações que foram se sucedendo e concedendo a ele o dom de viver. No aniversário deste ano, só posso dar de presente sua presença em mim. Acordei triste, confesso. Mas confesso, também, que conheço a tristeza. E a cultivo como parte de quem sou. Ela me humaniza, me explica que eu preciso de colo. E que, se choro, é porque aprendi que a lágrima é uma delicadeza da alma para acalmar os meus sentimentos. Meu pai amado. Feliz aniversário. Não sei como é a festa na morada em que você vive. Só sei que você vive. Aí e em mim. E, fica tranquilo, daqui a pouco o choro vai embora, e eu volto ao que você me ensinou. Viver. Gostar de viver. Publicada no dia 08 de dezembro, no jornal O Dia RJ. voltar |
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