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Acadêmico: José de Souza Martins "O problema do PT é o excesso de partido e a escassez de política. A longa crise do petismo foi configurada com a Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, feita basicamente para ganhar a eleição daquele ano a qualquer preço."
Um influente senador do PT declarou há poucos dias que seu partido precisa falar para além do terço que é o de seus eleitores fiéis. Ainda que, fiéis mesmo, menos de um terço. Já é alguma coisa num partido em profunda crise e historicamente fechado na armadilha de falar apenas para si mesmo. Sobretudo, falar apenas aquilo que seus militantes estão acostumados a ouvir e sabem ouvir o que pode ser uma interpretação pobre e até deformada da situação e das ocorrências políticas do país. O problema do PT, porém, é o excesso de partido e a escassez de política. A longa crise do petismo foi configurada com a Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, feita basicamente para ganhar a eleição daquele ano a qualquer preço. Uma proposta de aliança incondicional com o grande capital sem qualquer indicação de quais eram e seriam as ressalvas próprias de um partido de trabalhadores para semelhante entrega. Sem qualquer afirmação explícita de que com a Carta o partido abria mão, num eventual governo seu, de uma potencial postura de esquerda e se deslocava para o centro-direita oligárquico e clientelista. Até para práticas de direita, nas formas anômalas de obter fundos para ficar no poder. Isso está basicamente na alarmante redução da carta a considerações de ordem econômica e de política econômica e de crítica à política econômica do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. É impróprio e insuficiente. Partido de trabalhadores e, portanto, partido que deveria ser o da precedência dos temas sociais, o PT nada tinha a dizer quanto aos avanços de política social no governo que contestara durante anos. Tinha apenas objeções. Embora tivesse adotado como seu o Bolsa Família e o programa de combate à escravidão. Na economia, disse o que não faria, mas não disse o que faria. Menos ainda na política social. Nesse capítulo deixou subentendido que uma mudança na política econômica mudaria o destino dos trabalhadores para melhor sem dizer melhor em que. A mesma coisa que diz este governo de direita. No mínimo, além das meras palavras, faltou dizer que o partido, com a carta, abria mão de uma explícita oposição ao capitalismo, sem nunca ter indicado oposição em nome do que, para se compor com o capitalismo, sem tampouco indicar em nome do que. A virada do PT só teria sentido em nome de um capitalismo de composição, atenuado, em nome da preservação de uma versão social do próprio capitalismo. A da repartição da riqueza social também com os trabalhadores e não propriamente com um partido de trabalhadores. Nesse caso, era necessário elaborar e tornar explicita a teoria dessa composição, para indicar que esquerda o partido representava ao se propor como governante e gestor político de uma economia capitalista. Qual pode ser o capitalismo de um partido de esquerda? Qual esquerda pode ser a que se propõe a governar para o capitalismo? Não é apenas um problema brasileiro. No mundo inteiro, as esquerdas já deixaram de ser esquerdas de superação do capitalismo para ser esquerdas de composição com o capitalismo em troca de concessões no plano dos direitos sociais. É a consequência da usurpação do trabalho pelo capital, através de tecnologias de minimização dos dispêndios com salários e custos do trabalho. Com o trabalho economicamente fragilizado, não há como ter uma esquerda politicamente forte. A menos que a esquerda compreenda que uma renovada possibilidade democrática de esquerda decorre do surgimento do que a filósofa húngara Agnes Heller (1929-2019) define como necessidades radicais. Cuja solução depende de transformações sociais inevitáveis e decisivas. O capitalismo transformou a sociedade em sociedade de consumo. Deslocou a relevância social do ato de trabalhar para a irrelevância do ato de comprar e consumir, em que o consumidor pode ser substituído e manipulado. É apenas peça transitória do mercado. Além do que, as necessidades radicais já não são principalmente as relativas à materialidade da sobrevivência e sim ao modo de viver. Com isso, a política está cada vez mais longe dos interesses próprios das diferenças de classe social. Ricos e pobres são hoje personagens da sociedade de consumo em primeiro lugar, a sociedade em que todos se parecem, mesmo no artifício das roupas baratas tardias que imitam roupas caras de vanguarda. As classes sociais subsistem ocultas, sendo o que expressam e não propriamente o que são. O próprio PT jactou-se de ter transformado muitos brasileiros pobres em brasileiros de classe média. O que se deu menos pela melhora em suas condições de vida e mais por ter criado as condições políticas para difusão de uma mentalidade de classe média mais abrangente do que a da mera identidade laboral e proletária. O teatro e o fingimento transformaram a classe social em performance. Em sua fala, o senador do PT não diz que seu partido quer ouvir mais e ouvir melhor outros partidos, os democráticos, para libertar-se da estreiteza corporativa que pode ter-lhe fechado as portas da história em nome do faz de conta. Publicado em Valor Econômico [Suplemento Eu& Fim de Semana, Ano 20, Nº 991, S. Paulo, sexta-feira, 29 de novembro de 2019, p. 3]. voltar |
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