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PRESO DO LADO DE FORA
Acadêmico: José de Souza Martins
"Lula conhece o Brasil profundo, dos que vivem à margem do Brasil próspero dos poucos, sem deixar de conhecer este também. Lula vem do sertão e do subúrbio. Bolsonaro conhece o Brasil superficial do Facebook e do Twitter. Vem do quartel e das limitações socializadoras próprias das instituições totais. Nestes dias litúrgicos que se seguem à saída de Lula da prisão, no intervalo de sua pena, fica claro que um é prisioneiro do outro e nenhum dos dois compreende e busca uma saída para o Brasil. Eles tem apenas saídas pessoais."

A interrupção do cumprimento da pena do ex-presidente Luiz Inácio por decisão de juiz do Paraná, em decorrência da alteração de jurisprudência pelo STF, introduz mudanças também no cenário político brasileiro. O Lula que saiu da cadeia não deveria ser o mesmo Lula que nela entrara em abril de 2018. Muita coisa mudou de lá para cá. A questão é saber o que mudou no processo político que também o tenha mudado.
Seu futuro, o do PT e o das próprias esquerdas depende muito da compreensão que do assunto desenvolveram nesse período. Se continuarem com as mesmas polarizações ideológicas e programáticas, não irão a lugar nenhum.
Na cadeia, ele permaneceu como protagonista da política brasileira enquanto fantasma que assombra Bolsonaro e quantos chegaram ao poder no Executivo e no 2 Legislativo em consequência da queda de Lula e do petismo. É, também, o fantasma do Judiciário.
Lula do lado de fora da prisão, continua preso à trama política de que a prisão faz parte, que dele não depende, mas que dele exige e a ele impõe um diferente discurso e uma diferente atuação política. De certo modo, ele coloca nessa prisão o próprio Bolsonaro, que não terá como não levar em conta o rumo do imaginário político brasileiro no comportamento do povo com Lula fora da cadeia. Essa cadeia é agora a mediação que dá sentido à política no Brasil. Nela, era um condenado a mais, fora dela é vítima que, aqui, encarna sentimentos não petistas do povo.
Em suas primeiras horas de liberdade, Lula dá indicações contraditórias de como aproveitará, politicamente, a circunstância que agora o define. Se Lula e as esquerdas não conseguirem superar o bipolarismo do confronto sem projeto alternativo, ele se tornará um Bolsonaro de esquerda, do mesmo modo que Bolsonaro, desde a campanha eleitoral, tenta propor-se como um Lula de direita.
O rito dos petistas à porta da Polícia Federal, em Curitiba, na hora da saída de Lula da prisão, é boa indicação do que Luiz Inácio é e pode e Jair Messias não é nem pode. Bolsonaro não tem a destreza do verbo e a clareza do discurso que Lula tem.
Lula é bilingue. Fala, compreende e se faz compreender pelo povão da roça e da periferia das cidades, de língua brasileira impregnada de vocabulário e de sotaque nheengatu e do duplo de seus silêncios e sobressignificações. Fala e compreende, também, a língua dos brasileiros da universidade e dos brasileiros cultos e é por eles compreendido.
Sua língua é muito mais universal que a língua de Bolsonaro. Qualquer coisa que ele diz alcança mais brasileiros. Depende, porém, do que disser e em nome de que causa disser. A circunstância da fala política de todos mudou desde sua prisão. Os primeiros sinais, porém, são de que Lula não decifrou os enigmas do Brasil social e politicamente mudado entre abril de 2018 e novembro de 2019. O Brasil não está procurando Lula. Está procurando quem desmonte a armadilha dualista em favor do centro. Ele poderia ter esse papel.
Na porta da Polícia Federal outras características da nova situação de Lula marcam a diferença radical com a situação de Bolsonaro. Uma é a do caráter comunitário de seu mundo político. Durante os 580 dias de sua prisão, como ele 3 mesmo destacou, não houve um único dia em que não houvesse militantes de sua causa do lado de fora para gritar-lhe em uníssono “Bom dia, Lula”, “Boa tarde, Lula”, “Boa noite, Lula”. É uma comunidade de pessoas presentes e ausentes, a favor de uma causa, a do Brasil.
O público de Bolsonaro é sociologicamente outro, societário, individualista, conflitivo, competitivo, movido a medo e rancor partidário. Não junta senão ocasionalmente e apenas porque é contra a causa do outro, não porque tenha uma.
O mundo comunitário de Lula é um mundo em que as pessoas têm face e nome. Nenhum outro político brasileiro logra essa façanha. Bolsonaro conhece o Brasil oficial e superficial, do Facebook e do Twitter. Lula conhece o Brasil profundo, dos que vivem à margem do Brasil próspero dos poucos, sem deixar de conhecer este também. Lula vem do sertão e do subúrbio. Bolsonaro vem do quartel, e das limitações socializadoras próprias do que o sociólogo canadense Erving Goffman define como instituições totais.
Lula e Bolsonaro, na nova circunstância da liberdade de Lula, personificam mais vivamente do que antes a característica menos visível e mais decisiva de dois Brasis. Bolsonaro foi eleito, assumiu o poder, esvaziou seu mandato ao fazer da família um condomínio político, cercou-se de ministros que apenas se empenham em concretizar um programa de oposição à esquerda, programa de uma direita que não tem programa.
A circunstância é diversa da das eleições. O povo brasileiro não elegeu o ministro Guedes, que alterou significativamente nosso destino como povo e nação. Já não sabemos quem somos. Lula e muitos de seus seguidores e admiradores sabem. Resta saber, sabem quanto e como para a ele se oporem com um projeto de nação propriamente político.

José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq; Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP; Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto)

Publicado em Valor Econômico [Suplemento Eu& Fim de Semana, Ano 20, Nº 989, S. Paulo, quinta e sexta-feira, 14-15 de novembro de 2019, p. 3]




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