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O FIO DO AMOR
Acadêmico: Gabriel Chalita
Minha avó gastava parte do dia com as agulhas e o fio de novelo preparando calor. Com seu tricô, viajava nas imaginações e nos fazia blusas, cachecóis, mantas, gorros e o que julgasse necessário para espantar o frio. E fazia com o prazer consciente de quem já sabia que a vida não dá tréguas e que é a coragem que nos faz compreender que aquecer os outros é nosso melhor propósito.

Minha avó gastava parte do dia com as agulhas e o fio de novelo preparando calor. Com seu tricô, viajava nas imaginações e nos fazia blusas, cachecóis, mantas, gorros e o que julgasse necessário para espantar o frio. E fazia com o prazer consciente de quem já sabia que a vida não dá tréguas e que é a coragem que nos faz compreender que aquecer os outros é nosso melhor propósito.
Sofreu ela de partidas dolorosas. Deixou suas infâncias e teve que ser adulta. Deixou sua terra e descobriu a saudade. E foi vivendo. Falou muda, não poucas vezes. Chorou para dentro, para não se manifestar. Mas resistiu. Essas histórias, eu soube em seu colo. Eu insistia em ouvir novamente. Queria detalhes da longa viagem no navio. Queria saber quem acenou no porto da partida. Até o tempo do choro me interessava. E ela contava com vagar. Depois, eu ia para a escola e ela voltava à sua tessitura.
Houve um dia em que ela olhou, com alguma divagação, uma blusa que estava quase pronta. Olhou e não aprovou. E foi desfazendo com um fio que ia formando um novelo disposto a receber tudo o que já havia sido investido no que traria calor. Para, depois, começar novamente. Sem receios dos erros de ontem.
Ainda ontem, um amor se foi. E, novamente, meu coração engasgou. Vivemos juntos o tempo das cobertas. Parecíamos prontos para permanecer. Tentei arrumar uns pequenos buracos que sentia no que nos cobria e ele disse nada. Apenas se foi. Tentei um aceno como aqueles que os irmãos da minha avó fizeram no porto da despedida. Ele disse outras coisas. Estava apressado para o almoço e não era eu o suficiente para espantar sua fome. E se foi. O sentimento de pouca importância tomou conta de mim. A pressa era tanta que a mensagem me significava ausência de amor.
Não é a primeira vez que sinto o que sinto, mas, enquanto sinto, sei que será o frio o meu companheiro. É hora de recolher o fio. É hora de aguardar o tempo do reinício. O que aprendi, entretanto, é prosseguir sempre. Com as mãos doídas ou não. Com as desilusões de mais um amor que não resistiu. Apenas, prosseguir.
Minha avó fechou os olhos, há algum tempo. E eu, de olhos abertos, vejo o passado e o futuro. E os fios que se embaralham nos meus sentimentos. Percebo os meus erros, eles vivem em mim. Percebo a pressa dos que não compreendem que eu posso me arrumar. Percebo, também, os erros dos outros e as minhas implicâncias. Longe de mim, a ideia de perfeição. Não há terreno amigável nas terras em que piso. Meus pés já sangraram muito. Mas meus olhos jamais perderam o poder de ver. O horizonte da vida é convidativo. Há paisagens por todos os lados. Algumas se repetem; outras, não. Todas, entretanto, nos surpreendem. Isso quando saímos a caminhar. Ou a dançar, mais uma vez, com as mãos que preparam um outro agasalhar.
Sei que a educação na infância nos confere amarras para a vida toda e nos prepara os pés para os tais terrenos difíceis de caminhar. Hoje, me abraço a uma velha blusa e me lembro da minha avó e me lembro de que o amanhã existe.

Publicado domingo, 27 de outubro, no jornal O Dia (RJ).




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