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Acadêmico: José de Souza Martins Comédia de Juca de Oliveira, “Mãos limpas”, faz a síntese perfeita da nossa miséria política, da abundância de truques e disfarces que tecem a rede de cumplicidades que torna os poderosos meros cômicos do poder.
Estreou em São Paulo, há duas semanas, a comédia “Mãos limpas”, de Juca de Oliveira. Meu confrade na Academia Paulista de Letras, onde nos sentamos um ao lado do outro, sussurrou-me ele, algumas vezes, tópicos da peça em elaboração. Não inventava nada, a não ser na fórmula e na forma propriamente artísticas de sua aguda percepção da realidade. Todos sofríamos, e ainda sofremos, com a visibilidade pública de uma sina em que fica claro que somos seres meramente adjetivos do sistema político. Juca, no entanto, reconhece, na sucessão dos eventos, nos episódios e depoimentos recolhidos na Operação Lava Jato, a matéria prima de sua bela e oportuna arte. Juca fez a síntese perfeita de nossa miséria política, da abundância de truques e disfarces que tecem a rede de cumplicidades que faz dos poderosos meros cômicos do poder. Os diferentes perfis e as diferentes personagens se juntam no desempenho de um elenco de atores de grande reputação e extraordinária competência. Todos atados entre si como artífices de uma trama em que o cômico nasce no mero desencontro entre os valores próprios da verdadeira política e a realidade nua e crua do modo como as personagens se desconstroem pelo toque mágico da corrupção e do fascínio do poder. A peça de Juca de Oliveira me fez rever o grande número de episódios minúsculos e fragmentários que, desde 2004, nos assombra a todos. A corrupção, sim, mas também nossa criatividade corruptiva, nos detalhes de um rico artesanato de ladrão competente. Aquele que rouba uma nação inteira e ainda elabora o pretexto de sua falsa inocência e das razões para se apropriar do alheio. Processados e presos, consideram-se injustiçados. São coautores da comédia, cujo maior protagonista é nossa inocência carneiril. Os cúmplices desse sistema, os eleitores sectários mas não politizados, os reacionários por convicção e até de nascimento, os inocentes úteis e convenientes, ignoram. Muitos deles, diariamente, acusam o comunismo por nossas misérias. Mas, qual comunismo se nunca tivemos no país um regime comunista? Ignoram que o comunismo caiu com o muro de Berlim, com o debilitamento das esquerdas, mesmo as que não se alinhavam com o partido comunista. Os ignorantes do capitalismo nativo ignoram, sobretudo, que são os maiores inimigos do capitalismo. Porque o destroem por dentro. O melhor conhecedor do capitalismo foi um alemão anticapitalista chamado Karl Marx. Decifrou-lhe os mistérios e contradições. Há alguns anos, conheci numa conferência no Centro Cultural Britânico uma sobrinha de Roberto Cochrane Simonsen, um dos maiores empresários brasileiros, engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, um dos fundadores e presidentes da FIESP, e fundador da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Contou-me ela que a tia, Dona Raquel Simonsen, descobrira um dia no móvel de cabeceira do marido um exemplar de O Capital, de Karl Marx. Autodidata nas questões sociais, capitalista inteligente e culto, Simonsen sabia que em Marx estavam apontadas e analisadas as fragilidades do capitalismo de que ele era um dos melhores representantes e defensores. Se a esquerda também lesse Marx, não cometeria os erros que tem sido frequentes em sua história, apesar dos acertos interpretativos da sociologia marxiana. Marx cientista tinha a clareza que o marxismo ideológico não tinha sobre o mundo capitalista, especialmente sobre as sociedades limítrofes da época, como a russa e, hoje, as latinoamericanas e as africanas. Simonsen, nativo que era e conhecedor de sociologia, sabia que em Marx havia não só uma teoria do desenvolvimento do capitalismo, mas também uma teoria do capitalismo subdesenvolvido e tropical, vitimado pelo desenvolvimento desigual, pelo desencontro entre o desenvolvimento econômico e o subdesenvolvimento social e político. De suas empresas, como a Cerâmica São Caetano, na qual trabalhei quando era adolescente, fazia laboratórios de superação do capitalismo botucudo e antissocial. Outros empresários, ao longo de nossa história, fizeram o mesmo: Jorge Street (1863-1939), Salvador Arena (1915-1998). Sem contar os que transferem parte de seus ganhos, algumas vezes descomunais, para a educação e a alta cultura, a ciência, a arte. Protagonistas de um capitalismo social, que é a única salvação para o capitalismo. Um capitalismo socialmente honesto, comprometido com a democracia do pensamento crítico. Ou, será impossível o capitalismo honesto e democrático? A peça de Juca de Oliveira nos salva da sisudez falsa e infantil que chegou ao poder como cúmplice de um capitalismo baseado na ignorância. Ela nos restitui um dos mais inteligentes aspectos da consciência crítica, o da comédia e do riso. Gargalhadas neles! Publicado em Valor Econômico [Suplemento Eu& Fim de Semana, Ano 20, Nº 986, S. Paulo, sexta-feira, 25 de outubro de 2019, p. 3] José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq; Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP; Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê). voltar |
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