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A PELEJA RELIGIOSA
Acadêmico: José de Souza Martins
"É um erro interpretar o crescimento numérico dos evangélicos nominais em comparação com o decréscimo do número dos católicos nominais, na Amazônia, como se fosse uma disputa futebolística entre religiões e essa disputa fosse a motivação do Sínodo."

As prováveis implicações sociais e religiosas do Sínodo Pan-Amazônico, inaugurado pelo Papa Francisco nesta semana, em Roma, pedem análises sociológicas apropriadas para compreender o que está acontecendo. Não só nem principalmente na Igreja Católica, mas na sociedade subdesenvolvida que somos.
Há um conflito no âmago do Sínodo que se situa no cenário relativamente novo das conflitividades sociais que já não são, essencialmente, as das classes sociais, mas os dos valores sociais.
O mundo conhecido se desmantela. Lucrar sem contrapartida social e sem respeito pelo outro está no cerne das pobrezas do mundo. O capitalismo deixou de existir na sua matriz clássica, a da ética do lucro no marco da responsabilidade social de quem lucra. É hoje uma economia de jogatina, que reúne executivos e ricaços na voracidade do ganho pelo ganho, com a cumplicidade dos que usurparam a democracia de seus legítimos protagonistas.
O mundo que o Sínodo se propõe a decifrar e vencer é o mundo da alienação contemporânea, a do homem desfigurado por essa economia coisificadora de todos. O mundo em que, cada vez mais, a idolatria da coisificação toma o lugar da fé. A Amazônia é o lugar do mundo em que o homem criado à imagem e à semelhança de Deus, na concepção judaico-cristã, está mais ameaçado. É onde o bem comum da natureza mediadora da revitalização da vida virou propriedade e mercadoria para o bem de alguns e danação de todos.
É, pois, um imenso erro analisar o crescimento numérico dos evangélicos nominais em comparação com o decréscimo numérico dos católicos nominais como se fosse uma disputa futebolística entre igrejas e fosse a motivação do Sínodo.
Pensamos o mundo em que vivemos sem a consciência social de que, de fato, nele não vivemos. Tornamo-nos seres adjetivos de um mundo que já não nos pertence. Um mundo em que as pessoas são tratadas como seres descartáveis. Em que até mesmo cresce a degradação da escravidão contemporânea: 25 milhões de trabalhadores em cativeiro, em 2016, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Um mundo de imensos retrocessos em relação às grandes promessas e possibilidades do capitalismo que emergiu da Segunda Guerra mundial.
Estamos em face de uma grande disputa entre a religiosidade e a forma da fé, de um lado, e a indiferença religiosa própria da consciência coisificada e sem alternativa da sociedade moderna, a sociedade do lucro pelo lucro. Uma questão em relação à qual a Igreja Católica é muito consciente e autora de ação crítica desde, ao menos, o Concílio Vaticano II, convocado por João XXIII no final de 1961, há quase 60 anos.
A suposta disputa numérica entre católicos e evangélicos só existe na mentalidade linear e viesada da cultura da coisificação. A Igreja Católica de verdade cresceu qualitativamente no Brasil inteiro e, também, na Amazônia, até pela conversão de católicos nominais ao catolicismo encarnado e de doutrina, o catolicismo consciente.
Para compreender o catolicismo amazônico, suas características e suas dificuldades é essencial tomar em conta que a maior celebração religiosa, católica, do País é a festa do Círio de Nazaré, imensa, popular e comovente. Tive oportunidade de participar dela há alguns anos. Desde então, o número de participantes da Festa do Círio só tem crescido. Mais de dois milhões de participantes na procissão principal, a de condução da berlinda da santa de volta da catedral a sua basílica, em Belém, um rito sacrificial de restituição e de reencontro.
Uma procissão que dura cerca de doze horas, sob sol inclemente, como se diz. Sem contar a procissão naval, de que também participei num pequeno barco em que foi celebrada missa, como em vários outros que acompanhavam a embarcação da Marinha que conduzia a santa num dos dias de procissão da festa que se estende por mais de uma semana.
O aspecto principal do Sínodo é, portanto, completamente outro. Desde o Concílio Vaticano II, o ecumenismo e a unidade dos cristãos tem sido um norte de igrejas como a Católica, a Anglicana, a Metodista, a Luterana. A unidade na diferença, como sublinhou o próprio Papa na abertura do Sínodo, a universalidade da fé encarnada. Uma volta à concepção libertadora e emancipadora do Evangelho, a recusa de uma religiosidade de escravidão.
Essa causa é a do combate religioso e ético contra a coisificação do ser humano na sociedade moderna, cujos ídolos são hoje a mercadoria e o dinheiro. O catolicismo renovado pelo Concílio em nome de uma revalorização cristã do ser humano e de uma humanização do homem no marco dos valores evangélicos do reconhecimento do amor ao próximo e no respeito às mediações que recolhem a gratuidade da natureza como dom.

Publicado em Valor Econômico [Suplemento Eu& Fim de Semana, Ano 20, Nº 985, S.Paulo, sexta-feira, 18 de outubro de 2019, p. 3]


José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq; Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP; Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).




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