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Acadêmico: Gabriel Chalita Da janela, vejo a pressa e a calmaria. Vejo as grosserias e a gentileza. Fotografo em mim as cenas belas. É com elas que gosto de sonhar.
Ando pouco. As forças foram embora com as horas. Sem grandes avisos. Um dia, percebi que estava velha. Para sempre velha. E o que fazia ficou em um templo de feitos que só podem ser visitados pela minha memória. Os dias ficaram lentos e as pernas preguiçosas. Ainda organizo a casa. Gosto da varrição. Para convidar a ternura, canto canções de ontem. Vez ou outra, percebo que a vassoura varre nada, apenas os incômodos de um dia de dor. Hoje, é aniversário de um dia de dor. Quisera eu ter o dom do esquecimento. Ele partiu hoje, faz muitos anos. Deixou uma explicação simplória, desenhou culpas e mais culpas em mim e se foi. Nós nos vimos poucas vezes. Sem nenhum aceno. Quisera não ter acreditado em amor único. Quisera ter me feito nova para uma nova história. Fiquei, entretanto, aguardando a primavera, aguardando um milagre que fizesse renascer um amor tão lindo. Ele nunca mais voltou. Tive que me virar sozinha com o frio. De tristeza, fiquei rica. Quando alguém trazia alguma notícia, conversava com as lágrimas para que não viessem enfeitar os meus sentimentos. Tenho vergonha. Soube ele me convencer de que o erro foi meu. Hoje, nem sei. Gosto da janela da minha sala, porque nela tenho o mundo. O bairro foi crescendo e já não sei de todas as vidas. As que conheço, contemplo. As outras, imagino. Não, não tenho vocação para mexericar. Falo pouco dos outros, mas gosto de ver. E, quando vejo, percebo um mundo que é maior do que a minha dor. Vi, há pouco, o choro doído de uma mãe voltando da última despedida de uma filha atingida por uma bala perdida. Acendi uma vela, na solidão da noite, e pedi luz àquela família. Vi jovens despreparados para o amor se machucando com gritos de ódio. Lamento todo ódio que há no mundo. Cultivei a beleza durante muitos anos e, ainda hoje, me ajeito como posso. Gosto de estar bonita como uma prova de gratidão ao universo. Sem excessos. Antônio era mais novo do que eu. E a mulher que me sucedeu mais jovem do que nós dois. Disse ele que não foi a idade, mas minha distância. Falou sobre histórias que ele mesmo criou. Pessoas criam histórias e nelas vivem. E nelas se emaranham e chega um dia que difícil fica saber o que é real e o que é desejo. Quisera eu ter o poder de curar destinos. Não, agora não estou falando de mim nem de Antônio. Falo da mãe que perdeu a filha. Sei hierarquizar a dor. Não tive filhos. Quando percebi, lá se foram as horas. Da janela, vejo a pressa e a calmaria. Vejo as grosserias e a gentileza. Fotografo em mim as cenas belas. É com elas que gosto de sonhar. Jânio tem mais de 90 anos e leva sua mulher em uma cadeira de rodas para se alimentar de sol e para ver o dia. Sempre me comovo. Despistaram os estranhamentos e permaneceram juntos. Silvia leva o filho que não pode ver para o jogo de futebol. E narra o que acontece. E o abraça em caso de vitória ou de derrota. Daqui, só vejo a ida e a volta. O resto, me dizem ou eu imagino. Tenho uma vizinha que, como o filho de Silvia, também não pode ver. Mas que, como eu, gosta da janela. Cortinas fechadas são um convite para o fim. Tenho, ainda, um bocado de vida em mim que me faz gostar do belo e rezar para que o feio não incomode tanto a luz da primavera. O feio é o grito de ódio e o espancamento da alma. É o arrogante e o que mente. É o que tem inveja da alegria. Do meu jeito, no meu tempo, com as minhas cicatrizes, eu vivo a alegria. Gosto das flores, porque penso nas gentes. Nascemos para florescer. Ainda nem era primavera quando Ághata se foi. Tristes vidas que se cruzam nos discursos dos feios. E que, prematuramente, se despedem. A minha fé me acalma, a morte é pequena demais para terminar um amor tão grande. Ouço dizeres desanimados. E compreendo. Mas como tenho, por ofício, ver o mundo, sei que os dias se sucedem e que os que causam desnecessária dor partirão. É a minha esperança. E quanto ao amor, prossegui amando. E amando prosseguirei. Estou velha. E há muita vida descansando em mim. Termino sorrindo para que amanhã eu possa prosseguir. Publicado no Jornal O Dia em 29 de setembro. voltar |
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