Compartilhe
Tamanho da fonte


OS DIAS FRIOS E OS DIAS QUENTES
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Em casa, falamos nada do ocorrido. Fiquei no meu quarto imaginando a mulher embaixo da terra. E as coisas dela que ficaram na casa. Não eram mais dela. Ela não voltaria mais."

Acordei, hoje, de conversa com a saudade. É um dia frio. Um dia estranhamente frio para essa época do ano. As temperaturas estão cada vez mais imprevisíveis. Dizem que há excesso de ação humana no curso da natureza.

As feridas, se lhes mexem muito, também ficam imprevisíveis. E ficam nos lembrando do que nos falta.

Pessoas nos faltam.

Um dia, morreu uma senhora na rua da minha casa. É o primeiro velório de que me lembro. Curioso, quis ir. Meus pais permitiram. E lá fomos nós. Havia choro intercalado com conversas alegres. Quando um parente que morava distante chegava, todo mundo chorava. Depois, o curso dos minutos com um café e algum biscoito.

Meus pais não estavam chorando. Em silêncio, rezavam. Resolvi que eu deveria chorar para representar a família. Fechei os olhos e comecei a imaginar alguma dor. Não me lembro das dores fortes que eu imaginei. Das feridas que surgiram na minha mente. Eu era criança. Só me lembro de que chorei um choro tão doído que virei o centro daquela despedida. As frases para mim eram todas reconfortantes: "Que menino lindo!", "Nossa, quanta emoção!", "Como pode uma criança sentir tanto?". Minha mãe chorou junto. Meu pai, também. Fiquei um pouco arrependido depois. Na época, pensava que o choro enterrava a felicidade. E lá se foi o corpo da mulher.

Em casa, falamos nada do ocorrido. Fiquei no meu quarto imaginando a mulher embaixo da terra. E as coisas dela que ficaram na casa. Não eram mais dela. Ela não voltaria mais.

Tive muitas machucaduras na minha vida. Algumas, até desejei. Achava bonito ver gente com o braço ou a perna engessada. Queria ter dentes tortos para usar aparelho. Ficava desiludido quando o médico da escola dizia que eu não precisava de óculos. Doente, me davam mais atenção. Então, não era tão ruim. Feridas no corpo de uma criança cicatri

Fui a muitos velórios. E chorei sem fazer esforço. Quando meu avô morreu, eu, já adolescente, ficava deitado em sua cama imaginando se um dia o reencontraria. É disso que me lembro nesse dia frio. Talvez porque a alma sinta alguma dor. Como se faz com as feridas da alma? Como se apressa sua cicatrização?

Tenho tudo o que preciso e tenho sempre alguma dor. Pelo que me falta? Por que penso no que me falta? Penso ou desejo? Quando tenho, não sinto que tenho. E depois choro. É assim com todo mundo? Percebi que amava depois da partida. Mais de uma vez. Desejava o fim e, quando o fim chegava, lamentava a falta. E a ferida. E o tempo da cicatrização. Foi assim com a morte de pessoas que amei. Foi assim com a morte do amor de pessoas que não sabia que amei.

O choro faz bem. Aprendi com o tempo. Chorar e agradecer pelo tempo. Onde estivemos juntos. Onde deixaremos de sofrer. O passado foi lindo, pena que demorei a compreender. O futuro existe, quero acreditar nisso. Mas é hoje que vivo. Nesse dia frio. Dias frios também passam. Dias frios talvez existam para que celebremos a chegada do calor. Feridas talvez existam para que nossa alma se enfeite de cicatrizes. É como um mapa dos sentimentos que, se soubermos compreender, nos ensinará como um guardador de saudades.

Acordei, hoje, de conversa com a saudade. Foi o que eu disse quando comecei. Sempre começo e sempre persigo o que falta sabendo que tenho o que tenho. Eu tinha pais que me amavam e perseguia as atenções. Carências de criança. De toda criança. Amadureci, mas permaneci carente. Como toda gente. Compreendi que o choro não enterra a felicidade. Faz parte dela.

Daqui a pouco, meus filhos acordam e vêm brincar comigo. E a conversa muda. A saudade compreende a alegria e parte. E depois volta. Como os dias frios e os dias quentes.

Publicado no dia 25 de agosto, no jornal O Dia (RJ).




voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.