|
||||
| ||||
Acadêmico: Gabriel Chalita "No consultório de Fabiano, havia sempre lugar para quem sofria com a dor ou com o preconceito. Dinheiro nunca foi o mais importante."
Fabiano comemorou há alguns dias seu aniversário de 80 anos. Recebeu dos seus filhos e da mulher um presente inesquecível. Um livro escrito por Pedro, o caçula da família. No livro, a trajetória do pai, seus sofrimentos e superações. A saída do interior e a chegada na capital. A faculdade tardia de Odontologia. O sonho realizado de trabalhar com a saúde, de devolver o sorriso às pessoas. No consultório de Fabiano, havia sempre lugar para quem sofria com a dor ou com o preconceito. Dinheiro nunca foi o mais importante. Vindo da roça, de uma infância de privações, Fabiano abraçara a generosidade como uma companheira inseparável. Em um dia que chegou depois de outro e antes de um que ainda virá, estava ele olhando as mensagens que pululavam no seu celular. Em tempos de política, elas se alvoroçaram ainda mais. Leu uma, duas, três mensagens de uma mesma senhora, amiga antiga. Defensora de um candidato, enviava textos depreciando o outro candidato. Fabiano sempre foi um homem elegante e, na elegância, pescou as melhores palavras para dizer algo a amiga. "Prefiro ler livros a ler algumas barbaridades que vêm chegando em meu celular", escreveu e enviou. A amiga respondeu de pronto "Ora, tenho que defender as minhas ideias". Fabiano resolveu gastar algum tempo e escolheu trechos que jamais poderiam ser verdadeiros nas mensagens enviadas pela amiga. "Você acredita que isso seja verdade?". Sem pausa, ela tascou: "Nem paro pra pensar nisso, só não quero que essa gente ganhe a eleição". Ele tentou: "Não é melhor enviar textos que destacam a qualidade do seu candidato em vez de mentiras sobre o outro?”. A amiga, sem pensar, já se posicionou: "Prefiro terminar a conversa aqui para não perder o amigo". Fabiano se viu envolto em dúvidas sobre se agira corretamente ou não. Os ódios levam algum tempo para se racionalizarem. Nesses casos, não teria sido melhor nada responder? Mas como se as mentiras vão se propagando sem nenhum crivo de pensamento? Foi quando entrou sua esposa. Disse da amiga, dos textos, da mentira, do radicalismo. Disse do que fez. A mulher de Fabiano, farmacêutica de bairro, conversadeira de vocação, sorriu para o seu amor. Elogiou a prudência do homem com quem dividia a iluminadora tarefa de viver. E o convidou para comer um pão na chapa com manteiga lustrosa, e um queijo derretido, vindo da serra. O café fumegante espalhava seu cheiro naquela cozinha cheia de prosas. Fabiano voltou ao tema das irracionalidades. Das ausências de argumentos verdadeiros. Das mentiras que marcam os desejos. Dos perigos dos radicalismos. A mulher concordou. Falou de um bate-boca na farmácia. A mentira chega sorrateira e fica. E expulsa o bom senso, o discernimento, a cordialidade. Enquanto tomam o café e comem o pão, saboreiam o que têm. Um ao outro. Os olhares prosseguem românticos. Ele elogia o cabelo da esposa. Ela agradece com olhos de amor. Ele pergunta se ela tem algum tempo para descansarem antes dela voltar para a farmácia. Ela sorri repetindo a palavra: "descansarem...". Quem tem o privilégio de amar alguém, em um entardecer de um dia que chegou depois de outro e antes de um que ainda virá, não perde tempo com impropérios em mensagens de Whatsapp. Publicado no dia 28 de outubro, no jornal O Dia (RJ). voltar |
||||
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562. |