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Acadêmico: Gabriel Chalita Gabriel Chalita conta a história de uma mãe que consola a sua filha.
A conversa se deu entre uma mãe e uma filha. A filha, jovem ainda, ardia em uma paixão teimosa. Havia feito todas as tentativas possíveis para estar ao lado de seu amado. Humilhou-se diversas vezes. Perdoou seus deslizes. Chorou um futuro que parecia decidido a não enlaçá-los. Ele parecia estar bem ao lado de uma outra. Ela imaginava os ditos que, da boca de seu amado, flechavam outro ouvido. Seria ele criativo e despejaria outras falas ou estaria repetindo o que um dia tanto a elevou? Estaria ele sentindo a sua falta ou a outra o preenchia plenamente? Enjoaria dela e voltaria para os seus braços, seu abraço, ou o melhor era não esperar nada disso e prosseguir? Cartas já foram enviadas. Mensagens também. Encontros com cheiro de acaso, muito bem planejados, deram em nada. Apenas um sorriso gentil e um "Como vão as coisas"? E nada mais. Mas, ontem ainda, havia fervura. Teria sido tudo um impulso, um desejo apenas? A efemeridade dos sentimentos é inaceitável para quem ainda os tem. Ele, definitivamente, havia esquecido as promessas de eternidade, os tantos "eu te amo" que tantas consequências trouxeram. A mãe ouvia as dores e os argumentos da filha. Ouvia, apenas. Era disso que a filha precisava. Mas chegara a hora de algum remédio. As feridas estavam por demais doloridas. E incomodativas. Foi quando surgiu a pergunta: "Mãe, você já sofreu assim?". A mãe olhou para trás e sorriu para dentro. "Diga, mãe. Você já se sentiu um nada, um troço qualquer, uma mulher trocada?". Depois de uma pausa, não muito longa, vem a resposta. "Filha, é evidente que sim. Mais de uma vez. Eu sei como dói. Um buraco se abre. E quem nos ensina como remendá-lo?" "Quem, mãe?" E foi quando a mãe, com a delicadeza que o momento exigia, lançou sua homenagem ao tempo. O tempo é senhor dessas circunstâncias. E é um senhor que não obedece aos nossos apelos. A dor não se vai no dia que decidimos. "Mãe, um dia passa e a gente nunca mais lembra?". Era a pergunta de quem ainda estava debutando no sofrer. "Não digo que nunca mais a gente lembre, filha. Mas é uma lembrança diferente". A filha quis saber, quis entender melhor. "As feridas doem. As cicatrizes, não". A mãe foi acariciando a filha e dizendo que a sua alma era cheia de cicatrizes. Algumas de paixões que se foram, outras de amizades arruinadas, outras de dissabores da profissão, da lida. Outras de despedidas forçadas. Estavam todas ali enfeitando a sua alma. "Enfeitando, mãe?". "Sim, filha, o sofrer nos enfeita com uma magia própria. Quando mexemos nas feridas, a dor é horrível e elas demoram mais para cicatrizar. Mas quando viram cicatrizes - e delas nos lembramos -, lembramos mais da beleza dos sentimentos do que dos abandonos. Não se lamente por sentir o que você está sentindo. Você está viva. Apaixonada, ardente. O tempo fará você se lembrar desse tempo de uma outra maneira". "Aí será cicatriz e não ferida, né, mãe?". "Acho que já estou melhor, acho que já virou cicatriz". "Calma, minha filha, não é tão rápido assim. Mas um dia você abrirá a janela e respirará um outro ar e, subitamente, perceberá que está pronta para outras paisagens". Era um dia se despedindo quando se deu aquela conversa. E a janela estava aberta. Mãe e filha viram o pôr do sol. Quantos amantes, naquele mesmo instante, viam o mesmo pôr do sol sem saber se estarão juntos no amanhã? Quantos, de olhos fechados, impedem-se de assistir a essas fascinantes despedidas. "Vou preparar uma comida gostosa para você. Se precisar chorar mais, chore. E não se envergonhe disso. É por amor e não por ódio que você está chorando". A filha olhou para a mãe e deu um sorriso há muito escondido. "Mãe, um dia eu vou ser igualzinha a você". "Cheia de cicatrizes, filha?" Riram juntas e se alimentaram uma da outra antes do jantar. voltar |
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