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Acadêmico: Miguel Reale Junior "A interferência para assegurar, portanto, a lei e a ordem, como na Rocinha, na semana passada, só se pode dar por iniciativa de um dos Poderes, e nunca por vontade própria do Exército."
Sabe-se como começa, mas não como termina agir acima da disciplina constitucional... Dois acontecimentos revelam como se está desarvorado diante da crise moral que nos assola. O primeiro fato diz respeito à manifestação do general de quatro estrelas Antonio Hamilton Mourão, que em sessão de loja maçônica pregou a possibilidade de o Exército intervir para pôr a casa em ordem. A grave declaração do general foi vazada nos seguintes termos: “o Exército já teria” planejamentos muito bem feitos “sobre uma possível intervenção no País. Até chegar o momento em que ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós (militares) teremos que impor isso (intervenção). Então, se tiver que haver, haverá (intervenção)”. Mais adiante, frisou o general: “Os Poderes terão que buscar uma solução. Se não conseguirem, chegará a hora em que teremos que impor uma solução (...) e essa imposição não será fácil, ela trará problemas”. Entrevistado no dia seguinte, limitou-se a afirmar: “Se ninguém se acertar, terá de haver algum tipo de intervenção, para colocar ordem na casa. Não é uma tomada de poder. Não existe nada disso. É simplesmente alguém que coloque as coisas em ordem”. Um general, futuro presidente do Clube Militar, dizer que, se o Judiciário não retirar da vida política os autores de ilícitos e os Poderes não encontrarem solução para a crise, caberá ao Exército intervir para pôr a casa em ordem corresponde a um ultimato. É um indevido desafio. Se é preocupante tal pronunciamento público provir de general, que no dia seguinte confirmou pretender pôr ordem no País, atemorizador é não ter havido nenhuma reação do presidente da República, que engoliu em seco a bravata. O artigo 142 da Constituição bem estatui que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifei). A interferência para assegurar, portanto, a lei e a ordem, como na Rocinha, na semana passada, só se pode dar por iniciativa de um dos Poderes, e nunca por vontade própria do Exército. A garantia da lei não permite ao Exército arvorar-se em substituto do Judiciário no caso de este não “retirar da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos”. Nem se justifica os militares intervirem temporariamente por ser necessário “simplesmente que alguém coloque as coisas em ordem”, em face de os Poderes não terem resolvido a crise moral. Uma pretensão dessa natureza recebida sem nenhuma repreensão do presidente da República, ou ao menos do seu ministro da Defesa, revela absoluta ausência de autoridade, fator único que torna viável esse desavisado e impertinente recado. Quem, como Temer, apenas cuida de não ter processo criminal aceito pela Câmara dos Deputados, faz de conta que a afronta à sua prerrogativa de chefe das Forças Armadas não existiu. Outro fato merecedor de cuidado é a decretação do afastamento de senador como medida cautelar alternativa à prisão preventiva imposta pelo Supremo Tribunal Federal, levando a confronto entre Poderes. Aécio Neves já sofrera anteriormente idêntica medida, levantada pelo ministro Marco Aurélio Mello. O procurador-geral recorreu dessa decisão, em face de o senador ter desrespeitado a ordem de suspensão de atividades parlamentares ao se reunir com colegas de bancada para discutir pontos da pauta de votação. Por essa razão se entendeu que infringira a medida imposta e determinaram duas alternativas à prisão: recolhimento noturno e suspensão das funções senatoriais. O Código de Processo Penal estabelece no artigo 319 que a prisão cautelar pode ser substituída por diversas medidas alternativas, dentre elas o recolhimento noturno e “a suspensão do exercício de função pública (...) quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”. Se há receio de conduta para dificultar a persecução penal, como ter, por exemplo, tentado impingir determinado delegado para presidir inquérito, é mais razoável aplicar a medida alternativa de comparecimento quinzenal em juízo para cientificar suas atividades. É uma solução intermediária, pois não se assemelha à prisão, visando a resolver o confronto entre Poderes. De outra parte, há distinção a ser feita entre o múnus do agente político e o do agente público. Os detentores de mandato eletivo só podem ser afastados de suas funções diante de previsão constitucional, pois, por serem titulares de cargos estruturais à organização política do País, integram o arcabouço constitucional do Estado, como assinala Celso Antônio Bandeira de Mello, sendo de natureza política, e não profissional, a sua vinculação com o Estado. Desse modo, o ministro Marco Aurélio Mello bem frisou não caber ao STF “afastar um parlamentar do exercício do mandato. Trata-se de perigosíssima criação jurisprudencial, que afeta de forma significativa o equilíbrio e a independência dos três Poderes. Mandato parlamentar é coisa séria e não se mexe, impunemente em suas prerrogativas”. Disse ainda Marco Aurélio ser a suspensão do mandato eletivo verdadeira cassação temporária branca, incompatível com a independência e a harmonia entre os Poderes. Compreende-se a posição dos ministros ao impor medidas restritivas a Aécio Neves: exigência de rigor na obediência a elas, antes desrespeitadas, e a intensa preocupação em valorizar a moralidade diante de uma classe política manchada por graves denúncias de corrupção. Mas para manter a democracia longe da sofreguidão de querer impor de plano a moralidade pública é preciso a cautela de respeitar a Constituição. Sabe-se como começa, mas não como termina agir acima da disciplina constitucional para pretensa redenção do País, mergulhado no desmando e na corrupção. Basta ler os Considerandos do Ato Institucional n.º 1, de abril de 1964. É a lição da História. *Miguel Reale Júnior, Advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça. voltar |
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