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UM DOCE PARA DIGERIR
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Nunca é tarde para escolher outro caminho, para deixar quem merece ser deixado, para dizer a si mesmo que a vida é curta para ser desperdiçada"

Era final de um almoço e ela pediu um doce. Disse, justificando: "Doce é bom. Ajuda na digestão". Eu discordei dando algum espaço para alguma explicação. "Doce ajuda na digestão? Imagine! Pelo contrário. Doce acumula gordura. Doce tem calorias. Doce engorda. Bem, a não ser que tenham descoberto alguma nova teoria. Descobriram?". Perguntei e um filme passou pela minha cabeça de tantas teorias surgidas e desaparecidas que criaram mitos na alimentação. O ovo, por exemplo, já foi vilão antes de ser o queridinho dos que querem um corpo escultural. A manteiga e a margarina. As misturas proibidas e depois liberadas de alguns alimentos. Ah, lembrei até do leite com manga. Alguns se contorciam de medo das reações quando viam um desavisado tomar suco de leite com manga. E os regimes inusitados. O da Lua. O do limão.
"Teoria?" - ela perguntou, interrompendo minha viagem, mas também viajando. Olhando ao longe. Não era, na verdade, uma pergunta de alguém que buscava uma resposta. Era uma tentativa de revelação. "Queria entender alguma teoria que me explicasse as escolhas erradas que eu fiz na vida". E foi assim que, antes do doce, ela revelou o seu amargor.
O marido não tinha escrúpulos em humilhá-la. O tempo cobrou o seu preço. Ela já não era a menina que o conhecera em um jogo de tênis. Não sei sua idade. Ela não revela e não acho necessário perguntar. Pois bem, entre pausas e soluços, ela disse do medo da solidão, do medo de buscar outra vida, sem as humilhações, do medo, inclusive, de não saber o que fazer sem elas. "Os meus seios não são os mesmos de quando nos conhecemos".
Contou-me dos 3 filhos. Falou que agora cada um vivia as suas escolhas. Estavam apenas os dois em casa. Ela e o marido. Ela e o marido e os monstros das comparações. Diz o marido que não tem desejo por ela. Que seu corpo perdeu todos os atrativos. Enquanto fala, arruma o cabelo e se olha no espelho que esta atrás da poltrona em que estou sentado. Eu digo que a acho uma mulher muito bonita. Ela não dá ouvidos e prossegue. "Ele faz piadas com os amigos sobre mim. Diz coisas que me depreciam. E eu rio. Rio de tristeza. Rio de medo. Rio de vergonha".
"E os filhos?", pergunto. Ela explica que não sabem, que não têm tempo para observar, que estão distantes. Ela fica distante.
"Ele já me bateu. Ninguém sabe. Foram poucas vezes. Mas ele me bateu".
Ficamos em silêncio.
Entro no assunto da atitude covarde e criminosa. Das delegacias em que mulheres podem contar o seu martírio. Ela me interrompe e diz que decidiu nada fazer porque não deveria ter sido feito e que ela tinha as suas razões. Olha, novamente, no espelho. Passa o dedo pelos olhos, buscando as rugas. Volta a mexer no cabelo. "Há muito tempo que sou infeliz. Não acredito, aliás, em felicidade".
Tento discordar, mas ela me lembra que sou jovem demais para compreender. "Eu já fui apaixonada por ele. Já senti muito prazer. Já sonhei com uma velhice terna". Mais uma vez no espelho. Agora estica um pouco a pele. "Não tem volta. Se tivesse volta, eu teria sido mais cuidadosa. Eu deveria ter impedido que ele começasse a me destratar. Agora é tarde".
Eu fico um pouco mais enfático para não ser interrompido como nas outras tentativas e insisto que nunca é tarde para escolher outro caminho, para deixar quem merece ser deixado, para dizer a si mesmo que a vida é curta para ser desperdiçada. Ela ri da minha ênfase e diz que gostaria de ser novamente jovem. Eu digo que as pessoas vivem mais.
"Ontem, ele me disse, com aspereza, que eu o incomodava com minhas histórias intermináveis".
Ela me diz que realmente tinha lindos seios. E eu digo que os seus seios agora têm muito mais histórias dos que os seios de antigamente. Ela os toca com algum carinho. E ri. Eu digo que espero ainda ter o prazer de comemorar sua alforria.
"Alforria?"
Chegou o doce. Ela olhou aquele doce com tanto prazer, com tanta necessidade, que me arrependi de minhas teorias nutricionais.
"Como é bom um doce para digerir".

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de SP) | Data: 23/10/2016




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