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O PROFESSOR E DRUMMOND
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Sempre há um professor. Este, o professor do Carmo, gostava de poemas, gostava de Drummond. Certa feita, explicava o professor, ele mandou alguns de seus rabiscos para o poeta maior".

Um amigo meu, Carmo, contou-me esta história. Carmo não é seu primeiro nome, nem o último. É o nome do meio. "No meio do caminho havia uma pedra", explicava Drummond. No meio de tanta gente, havia um professor. Sempre há um professor. Este, o professor do Carmo, gostava de poemas, gostava de Drummond. Certa feita, explicava o professor, ele mandou alguns de seus rabiscos para o poeta maior. Enviou em folhas brancas preenchidas com sua letra. Nada de máquinas de escrever ou de computador. O poeta merecia ler os seus textos inéditos. Evidentemente, ele os copiou. Guardaria no caso de uma publicação. Era um professor do interior. E, do seu interior, nasciam letras e palavras e frases. Pois bem, revela o meu amigo que o dito professor gostava de contar sua história com Drummond. Explicava ele com detalhes que demorou muito a se decidir se enviava ou não a tal carta com os tais poemas. Conseguiu o endereço do poeta. Investigou para saber se ele mesmo costumava ler as cartas que recebia. Quis saber de alguém se alguém já havia recebido alguma resposta. As informações eram vagas, mas ele decidiu prosseguir. E mandou. Lá se foram os dias de comedimento e a inauguração da ousadia. O maior poeta vivo haveria de ler, enfim, os seus poemas. Ficaria ele surpreso? Ficou relendo o que Carlos Drummond escrevera quando pela primeira vez leu o texto de Cora Coralina:

"Cora Coralina.

Não tenho o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração do seu. Carlos Drummond de Andrade"

O professor contou que a resposta do poeta veio. E veio delicada. Não quis revelar os entremeios do que disse. Apenas falou do início e do final. O início começava com "Estimado professor" e, a seguir, elogios à nobre profissão de quem semeia amanhãs. E, ao final, encerrava, antes da assinatura, com um carinhoso "abraços saudosos". "Abraços saudosos", repetia o professor.Insistia que era muita honra essa distinção. "Abraças saudosos" significaria, escreva-me mais, continue com sua obra poética, não me esqueça. O professor dizia e se emocionava.

Os alunos nem sempre são inocentes. O professor poeta já não gozava de boa memória. E não se sabe o tempo que a tal missiva de Drummond o havia emocionado. Quando o professor entrava na sala de aula, algum aluno o interpelava perguntando: "Professor, é verdade que o próprio Drummond lhe escreveu uma carta?". O professor enchia-se de orgulho e com modéstia iniciava: "Eu não contei para vocês? Não conto para não me gabar, mas foi verdade, sim. E sabe como ele terminou a carta? Abraços saudosos, abraços saudosos" E lá iam detalhes e mais detalhes da dúvida em enviar, do envio e do recebimento da carta do poeta.

Quando os alunos inquiriam sobre novas cartas ou sobre a publicação dos poemas, o professor olhava ao longe, dava uma pausa, e prosseguia o ofício. Carmo não gostava do que os alunos faziam. Tinha vontade de dizer ao professor que ele contava a mesma história toda a aula. Mas vivia em dúvida. Era tanta felicidade daquele velho mestre em contar o seu dia de glória, ao abrir a tal carta, que, talvez, não tivesse ele o direito de endireitar as coisas. À esquerda daquele peito, um coração batia feliz, por um tempo que talvez tivesse existido. Algumas vezes, ele terminava a aula com um poema seu. Eram bons, revela Carmo. Outras, dizia algo de Cora Coralina ou do seu amigo Drummond. E se emocionava como só acontece a um poeta.

Cartas são objetos não tão comuns. Professores prosseguem com seus saberes e com suas ausências. São humanos, afinal.

Ontem, foi dia do professor. Histórias como estas preenchem cada canto deste país. Mulheres e homens se desnudam para cobrir de futuro os alunos. Aos meus irmão de ofício, o meu respeito, o meu carinho.



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