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OS BICHOS DE CONFIANÇA NA ARCA DE NOÉ
Acadêmico: José de Souza Martins
Em artigo publicado no dia da posse de Lula, o acadêmico José de Souza Martins mostra, em forma de fábula, o que é governar e faz previsões sobre o primeiro e último dia de governo que merecem ser relidas nesse momento em que o PT deixa o poder.

Neste dia 1º de janeiro de 2003, os 22 mil viajantes da Arca de Noé estão sendo embarcados no lago Paranoá, em Brasília. Assim manda a lei e o costume. Chegaram de todos os cantos do Brasil para assumir o poder. Noé foi o eleito. São os bichos que, para embarcar, não precisam fazer concurso. Trata-se dos chamados cargos de confiança do governo. Nove mil desses bichos devem ser escolhidos no próprio partido de Noé. Numa hora de desemprego, é um alívio. A questão será a de encontrar tantos bichos talentosos para colocar na arca.
Haverá de tudo: jegues laboriosos, inteligentes macacos, hienas sorridentes, serpentes peçonhentas, aranhas armadeiras, preguiças, suaves micos-leões-dourados, espertas raposas, filosóficas corujas, moscas varejeiras, borboletas amarelas, mosquitos zumbidores, ouriços, araras vermelhas, papagaios faladores, pavões misteriosos, corvos famintos, pretensiosos louva-a-deus e até pacíficos pombos brancos. Haverá também o galo cantador e a representante dos bichos excluídos, a galinha-dangola, cacarejando o seu "tô-fraca", "tô-fraca", esperando a hora de bicar o milho do Fome Zero. O tucano ficará de fora porque o bico ocupa muito espaço.
Noé será confinado num dos camarotes, como manda a lei. Um ou outro bicho mais íntimo poderá eventualmente visitá-lo para dizer como vai indo o Carnaval da bicharada. Noé embarcará com um exemplar do Fome Zero embaixo do braço e um manual de instruções médicas para emagrecer numa das mãos. Descobrirá as contradições de quem tem o leme da arca: maneirar a gordura própria e saciar a fome alheia.
O primeiro ano dos 22 mil bichos será confuso. Antes de trabalhar, cada um terá que encontrar o beliche em que vai dormir, descobrir onde é o refeitório e onde é o banheiro, como se movimentar em tantos corredores que levam sempre ao mesmo lugar. No livro de bordo isso se chama burocracia, emperramento da máquina, primado da lei. Cada bicho terá, sobretudo, que descobrir a razão de o companheiro Noé tê-lo escolhido para embarcar.
Cada bicho acabará descobrindo que Noé e os companheiros bichos mandam menos do que pensam: a arca flutua sozinha, na calmaria dos bons momentos ou mesmo em águas revoltas. Às vezes encalha, outras vezes aderna, outras vezes embica no porto errado. Apesar de tudo, a arca chamada Brasil nunca naufragou, nunca pôs em risco a bicharada republicana. Seus arquitetos e carpinteiros foram muito competentes. Já eram decentes e cumpridores do dever antes da decência ser banalizada como slogan de campanha eleitoral.
No fim do primeiro ano, a bicharada começará a ficar preocupada. Terá perdido um ano só para aprender como a arca funciona, como evitar que afunde, qual é a língua que nela se fala, se há papel para distribuir ordens e cumprir promessas. Sobretudo, descobrir se as ordens são inteligíveis e se há quem as cumpra. Mudam os bichos, mas a arca continua a mesma de outros Noés.
Então começará o segundo ano da viagem. Que infiltrações de água diluvial são essas nas paredes? Já fizeram todos os assentamentos do ultimato dado pelo MST? A fome já chegou a zero? O salário já é decente? "Como vamos saber, se estamos aqui fechados?” comenta lá no fundo o tímido papagaio. Outro ano se passará entre cafezinhos de repartição pública e acertos políticos. Os bichos já terão descoberto que bravata revolucionária não governa e que governar é, em boa parte, apenas preencher os interstícios de uma sólida estrutura política legada por dom João 6º. O principal quase não se move. Governa-se mais o secundário do que o relevante. Fazer o quê? Governar é muito menos do que mandar. Quando muito, um ponto-e-vírgula numa sentença.
No terceiro ano, os bichos descobrirão que o Congresso exige demais e devolve de menos. E, portanto, as promessas não cumpridas têm um motivo e uma causa: a política e a democracia. Descobrirão que, além do terceiro escalão, existem outros escalões invisíveis, bichos que não foram embarcados na arca. Mas que exigem e mandam como se bichos fossem. No quarto ano, a memória dos bichos estará enfraquecida pelo ar viciado, pelo café enjoativo, pela gravata apertando a garganta. E pela prudência de esquecer regras, compromissos, princípios. A arca terá mais buracos e frestas do que tinha no começo.
Ao final do dilúvio, a arca pousará suavemente. O corvo será enviado para ver se há vida e não retornará mais: estará se fartando com a carniça que encontrar. Sairá, então, a pomba branca, que retornará mais tarde com o raminho de oliveira no bico. Noé e os bichos desembarcarão, estranhamente, no mesmo lugar onde embarcaram. Terão sempre a dúvida; jamais saberão se nunca saíram ou se nunca chegaram. A viagem lhes terá revelado os mistérios da história e da política, os mistérios do poder.

*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Entre outros livros,
autor de Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder, Contexto, 2016.



Publicado na secção Tendência & Debates,
Folha de S. Paulo, 1 de janeiro de 2003, p. 3.





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