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O QUE JOGA CONTRA
Acadêmico: José de Souza Martins
"A chama das Olimpíadas nos chega num momento em que o fulgor do país mal é visto da praia. Se havia a intenção de fazer das Olimpíadas a confirmação épica do Brasil imaginário do neopopulismo brasileiro, a crua realidade da crise política e econômica expõe ao mundo o pesado avesso de pouco mais de uma década fantasiosa"

Os embates deste mundo conturbado abrigam-se na mensagem de paz da bela trama dos Jogos Olímpicos agora iniciados entre nós? O que ameaça desdizer o que os Olimpíadas pretendem dizer? O que há de menos nesse momento do mais da condição humana? O Rio de Janeiro se propôs, em 2007, a sediar as Olimpíadas, num momento em que a cosmética política colocava o Brasil entre as estrelas fulgurantes dos países emergentes. A chama das Olimpíadas nos chega num momento em que o fulgor do país mal é visto da praia. Se havia a intenção de fazer das Olimpíadas a confirmação épica do Brasil imaginário do neopopulismo brasileiro, a crua realidade da crise política e econômica expõe ao mundo o pesado avesso de pouco mais de uma década fantasiosa.
Não obstante, os portadores da chama sagrada acabam de concluir a longa e demorada travessia desde a Grécia olímpica a caminho da abertura dos Jogos Olímpicos de 2016. Solenemente, a chama cruzou a baía da Guanabara e o atleta que a conduzia pisou nas areias da praia do Novo Mundo 120 anos depois da primeira Olimpíada moderna. Ocultas nas cerimônias e símbolos, grandes contradições e tensões sociais estão presentes no acontecimento.
Se, por um lado, os Jogos Olímpicos modernos florescem num mundo redesenhado pela violência do Imperialismo econômico e político que nascia no final do século XIX, florescem também como reação do bem e da esperança aos efeitos desagregadores da nova geografia do dinheiro e do poder. Não foi casual que o espírito olímpico se alimentasse dos valores diletantes de uma nobreza que perdera o protagonismo histórico. Disponível agora para repensar criticamente o mundo na perspectiva da competição esportiva e não na da guerra de conquista e de dominação.
O sonho do barão Pierre de Coubertin, criador das Olimpíadas, era um sonho de retomada e disseminação de valores ameaçados pelo primado do econômico e do lucro na ordenação do mundo. A força e a beleza olímpicas não conflitavam com o advento do indivíduo como sujeito, ainda que dessa modernidade lucrativa, mas reatavam a individualidade com os valores do humano, com a comunidade do gênero humano, com a humanidade do homem. O homem antes da coisa e não o homem coisificado.
Esses valores persistem como valores centrais das Olimpíadas, apesar de toda a brutal deformação que fez com que ganhar uma medalha de ouro possa ser mais importante do que competir, mais importante do que afirmar a condição humana. É o nós que dá sentido às Olimpíadas e não o eu. As Olimpíadas nascem e se propõem como grande ritual de afirmação da humanidade do gênero no marco do fato novo da mundialização, rito do encontro contra os fatores e motivos do desencontro, o corpo humano como obra de arte e não como corpo perecível e descartável, não como o corpo da linha de produção. Uma sadia vaidade pré-moderna se apossa dessa mundialidade oposta ao imperialismo e ao que o imperialismo significa.
Não obstante essas polarizações demarcadoras e a supremacia ética do que é próprio do espírito olímpico, os conflitos pequenos e grandes da realidade e da circunstância tem estado de tocaia para raptar ideologicamente o grande alcance das Olimpíadas. As Olímpiadas propostas pela social democrática República de Weimar foram realizadas pela Alemanha Nazista, em 1936, que não deixou de parasitar o evento em nome de seus valores autoritários. Teve que dissimular o racismo e os componentes anti-olímpicos da ideologia oficial. Diferente de tudo que se disse depois da Segunda Guerra Mundial, o entusiasmo com que os alemães acolheram o desempenho de figuras como o negro americano Jesse Owens sugere que nas entrelinhas do evento e na sociedade alemã ainda havia amplo espaço para o acolhimento do espírito olímpico.
Entre Moscou e Los Angeles, a função reguladora e deformadora da Guerra Fria não afetou a manifestação de diferenças substantivas e identitárias de ambas as sociedades, propiciada pelas Olimpíadas. Mas em Munique, o atentado contra a delegação israelense inaugurou um ciclo de medo que chega até nós, o do terrorismo, a revitalização da ideia de que o mundo é menor do que queremos e de que nele não há oxigênio para todos os seres humanos nem para a mundialidade da paz que as Olímpiadas representam.
Há, também, as coisas pequenas conspirando contra esse espírito. Nos Jogos Olímpicos do México, os primeiros da América Latina, a violência do oligarquismo antidemocrático promoveu o massacre da Plaza de Tlatelolco dez dias antes das Olimpíadas, contra estudantes, mais de 200 mortos, numa tentativa de limpeza de cena para fingir primeiro-mundismo no terceiro-mundismo. Estamos também nesse ciclo. Manifestantes, de um lado ou de outro do drama político brasileiro, que se exibem com faixas em inglês para turistas que nada tem a ver conosco nem querem ter. Manifestantes sem educação nem politização, partidarizados e autoritários, atacam e insultam uma atriz, simplesmente por ser ela quem é e ter ideias diferentes das deles. O de menos mandando no mais.

Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás],
Domingo, 7 de agosto de 2016, p. E2.




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