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Acadêmico: José de Souza Martins "Vivemos num cenário de valores sociais e morais opostos, perdidos no movimento pendular entre os extremos que não somos."
À medida que cresce o número de notícias sobre a delinquência juvenil, sobre o envolvimento de crianças na criminalidade, sobre a violência praticada por adolescentes nas escolas públicas e gratuitas até contra a própria escola, os colegas e os professores, as notícias sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com drogas, no uso e no tráfico, é cada vez mais frequente ouvir questionamentos sobre a proibição legal do trabalho infantil e juvenil: “Se estivessem trabalhando, não estariam disponíveis para a maldade, o crime, a vagabundagem, a violência”. À vista de rapagões de 15 anos devotados à vadiagem, muitos acham que lhes cairia bem o mesmo duro trabalho que recai sobre os ombros de franzinos garotos já responsáveis pelo sustento da família. Quem visita as cracolândias da cidade de São Paulo tem diante dos olhos a antevisão do Apocalipse da sociedade brasileira, jovens esparramados pelo chão, misturados com o lixo que eles próprios produzem, fartos de droga e faltos de esperança, de destino, inúteis quanto às obrigações sociais que cabem a todos. O roubo da infância pelo trabalho é um crime, mas o roubo do viver do jovem de rua, vitimado pelo emprego na violência, nos assaltos e no tráfico, é crime maior. Qual a opção: o ruim ou o péssimo? Quando o dilema é esse e continuamos a fazer enganosos discursos ufanistas sobre o progresso social do Brasil, o que mais nos resta se não temos nem mesmo a lucidez crítica para encarar de frente o que nos corrói e destrói como nação? A sociedade brasileira criou, nas últimas décadas, a criança e o jovem descartáveis, melancólica técnica de controle da natalidade e de eutanásia social. Muitas vezes, a sabedoria das pessoas comuns e simples, que fazem esses comentários em favor do trabalho também pelos menores de idade, é mais questionadora do que a sabedoria profissional dos sábios de gabinete, os que não conseguem compreender o modo como enxergam e interpretam a tragédia os que sofrem direta ou indiretamente a degradação que nos consome. Vivemos num cenário de valores sociais e morais opostos, perdidos no movimento pendular entre os extremos que não somos. Indicação de que esta sociedade não tem um eixo ético de referência que lhe permita discernimento quanto ao que é socialmente necessário para assegurar integração e participação social de todos. Não temos um projeto de futuro e mal cabemos no presente. Ingressei numa fábrica com 11 anos de idade. Não doeu. Ajudou na sobrevivência. Procuro compreender a reação de quem entende que o trabalho infantil e juvenil é educativo, um bem e não um mal, como procuro compreender o questionamento da proibição do trabalho para os menores de idade, tido como ato que os privaria da infância. Mas não creio que o dualismo ideológico, tão brasileiro e tão inútil, nos ajude a resolver com urgência esse verdadeiro crime de lesa-pátria que é tornar os imaturos adultos antes do tempo. Em São Paulo, o número de jovens infratores apreendidos cresceu de 8 mil, em 2000, para 14.400 em 2012 Diminui o número de adultos infratores e cresce o de menores infratores. As novas gerações estão em perigo. Em 2014, no Brasil, segundo o IBGE, trabalhavam 554 mil crianças entre 5 e 13 anos de idade. Um aumento de 9,5% em relação ao ano anterior. Eram trabalhadores de roça 62% dos infantes dessa faixa de idade, um indício de que, em relação a eles, o Bolsa Família fracassou. Deveria assegurar que se dedicassem exclusivamente à escola, pelo dinheiro da Bolsa libertados das carências que os levam a ganhar o pão nosso de cada dia com o suor do próprio rosto. A Bolsa não é um presente, uma dádiva, mas um pagamento pelo trabalho de frequentar a escola que os liberta do trabalho precoce na terra. Ir à escola e estudar são considerados na roça trabalho de criança, como puxar enxada é o dever dos adultos. A proibição do trabalho infantil e juvenil é uma medida necessária e justa. Criança é para ser criança e adolescente é para ser adolescente. Eles têm muito que fazer, que é próprio da idade, como brincar, fantasiar, crescer, socializar-se segundo os valores mais nobres da sociedade em que nasceram. Mas, num país como o Brasil, a proibição do trabalho infantil e juvenil é completamente hipócrita. Não o seria se o Estado brasileiro tivesse adotado e efetivado algumas medidas correlatas e necessárias, como a do ensino em tempo integral. Proibir o trabalho e deixar as crianças na rua, expostas ao assédio de traficantes, malandros e bandidos é uma irresponsabilidade e um crime. Crianças e adolescentes trabalham porque do dinheiro desse trabalho suas famílias carecem. Alguém poderá achar que este texto é politicamente incorreto. Eu também acharei isso se me convencerem que a proibição do trabalho dos imaturos, sem alternativa, para deixá-los à mercê de traficantes, ladrões e profissionais da violência e da violação dos direitos alheios é propriamente um direito e algo que se possa considerar politicamente correto. *José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Uma Arqueologia da Memória Social (Autobiografia de um Moleque de Fábrica), Editorial Ateliê, São Paulo, 2011. voltar |
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