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UMA CARTA DE MARIA
Acadêmico: Gabriel Chalita
"O que sei é que sua carta me trouxe uma certa nostalgia. Recuperei por algum tempo o valor das esperas. Não terei pressa em responder. Farei com vagar. Costurarei o manto com o qual gostaria de aquecê-la, nas terras onde meu pai nasceu. Quantas cartas eu escrevi ao meu pai? Muitas. Tenho algumas comigo. Em cada viagem, eu aquecia a saudade escrevendo para ele. E para minha mãe. Isso não faz muito tempo."

Recebi uma carta. Letra elegante. A remetente chamava-se Maria. E, depois, vinha o sobrenome. Não posso dizer, pois não pedi sua autorização.

Maria é professora em uma cidade pequena do interior de Minas Gerais. Justificou o envio da carta, e não de um e-mail, porque gosta das esperas. Parei nesse ponto da leitura e fiquei lembrando quantas cartas eu escrevi e recebi. Como era bom, na minha pequena Cachoeira Paulista, ver o carteiro chegar. Lia uma, duas, três ou mais vezes a mesma carta. E não respondia com atropelos. Dormia com os ditos da carta. Refletia. E, no outro dia, tecia o enredo da resposta.
Sem pressa.

Continuei lendo o relato de Maria. Partilhava comigo o prazer de lecionar. Leu alguns livros meus e queria testemunhar o que eles significaram no sagrado chão da escola. Contou-me do que é viver onde vive, lecionar onde leciona, morar onde mora. Falou das montanhas da sua Minas Gerais. Viajou pouco, mas por onde andou levou com ela o desejo de voltar. Nada é melhor do que estar onde se deve estar. Parei novamente e fiquei imaginando a sua volta para casa. Alguns dias de férias, algumas experiências em outros cantos e o canto da gratidão ao rever, na estrada, o nome da cidade em que nasceu. A sinalização dá conta de que falta pouco para beber da sagrada água. Água de bica. Pote de cerâmica que mantém o frescor da temperatura. Goles vagarosos para se sentir o prazer que um copo de água é capaz de proporcionar.

É professora há muito tempo. Já tem tempo para requerer a merecida aposentadoria. Mas prefere postergar. É bom estar com os alunos. Filhos de outros alunos. Talvez netos. O tempo e os seus caprichos.

Fiquei curioso para ver sua imagem. Imaginei, então.
Nem muito alta nem muito baixa. Cabelos elegantemente arrumados. Maquiagem leve. Roupas adequadas. Salto alto não tão alto. Alguma joia delicada, herança de família. E a casa? Com pomar, com horta, com fogão a lenha. Talvez não. Poucos resistiram.

Continuo a leitura. Diz ela que ficou feliz quando eu disse, em uma entrevista, que meu pai nasceu em Belo Horizonte; é mineiro, portanto. Fiquei tentando imaginar o seu sotaque. Gosto do sotaque de Minas. Há vários. Gosto da musicalidade, da cadência, das junções de palavras.

Maria não falou de marido ou filhos. Será que é solteira? Será que é viúva? Será que revelará esses outros detalhes em uma outra carta?
Em um ou outro trecho brincou com dizeres de outros escritores.
Falou da poesia do cotidiano e dos sonhos que ainda movem seus afazeres. Prefere a leitura aos programas de televisão. Prefere os clássicos aos jornais ou revistas. Ouve música e imagina. Da música, disse apenas isso. Imagina o quê? Que tipo de música? Há excelentes cantores mineiros. Falou sobre sua mãe que, também, era professora. E sobre alguns outros assuntos.

Ao final, as despedidas.

Vou responder sua carta. A mão. Vou fazer algumas perguntas que a minha curiosidade exige. Gostei de Maria. A começar do nome. Depois da profissão. Depois da composição correta de seu arranjo. Quem sabe um dia eu a encontre? Ou não. Quem sabe? O que sei é que sua carta me trouxe uma certa nostalgia. Recuperei por algum tempo o valor das esperas. Não terei pressa em responder. Farei com vagar. Costurarei o manto com o qual gostaria de aquecê-la, nas terras onde meu pai nasceu.

Quantas cartas eu escrevi ao meu pai? Muitas. Tenho algumas comigo. Em cada viagem, eu aquecia a saudade escrevendo para ele. E para minha mãe. Isso não faz muito tempo.

O tempo, hoje, é outro.

Tempo bom o de lembrar.

Saudade do meu pai. Da minha mãe, ligo ou escrevo hoje ainda.

E Maria. Bom domingo, Maria.

Até breve.

Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 22/05/2016.



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