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Acadêmico: José de Souza Martins "Essa diferença pautará o destino do PT agora oposicionista, mas pautará, também, o destino do novo governo e seus aliados. A chave da História pode ter mudado."
O afastamento da presidente Dilma Roussef da Presidência da República, pelo Senado Federal, e a instalação do processo de seu impedimento, abrem um cenário de dúvidas e de incertezas muito além das urgências de política econômica que devem motivar o novo governo. O partido afastado governou motivado por fatores muito diversos dos fatores que motivam a ascensão do vice-presidente ao poder. Se há um problema de fundo que dinamiza o afastamento da presidente, o das pedaladas fiscais, que justificam as formalidades do processo, há uma trama paralela de problemas que a remoção provisória do governo trouxe à tona. Essa trama é que presidirá a transição e colocará o PT na adversa situação de se insurgir contra o que já não é o governo da fantasia petista do confronto. O quadro da crise não está claro nem para os protagonistas, de um lado e de outro. Os que saem deram, supostamente, prioridade à solução das questões sociais, ainda que agravando a questão econômica; os que entram propondo prioridade às questões econômicas, ainda que com o sacrifício das soluções para os problemas sociais. Essa diferença pautará o destino do PT agora oposicionista, mas pautará, também, o destino do novo governo e seus aliados. A chave da História pode ter mudado. A compreensão desse processo pede que as análises se desenvolvam muito além dos quadros mentais próprios do PT, que dominam a narrativa da circunstância atual e a dominarão por longo tempo ainda, quer a presidente retorne ao poder, quer seja afastada definitivamente. Os valores, a visão de mundo e a ideologia petistas não serão banidos nem com o afastamento da presidente ou, mesmo, seu impedimento, nem serão reforçados com seu eventual retorno ao poder. No desconstrutivo julgamento do Senado, a sorte do País foi lançada. Quaisquer que sejam as consequências, o Brasil nunca mais será o mesmo, nem para os petistas nem para seus opositores. Mesmo fora do poder, o petismo se tornou protagonista histórico da nação: sua visão milenarista do mundo domina e dominará as polarizações e antagonismos da sociedade brasileira por longo tempo, até que nos emancipemos do misticismo que domina nossa consciência social e política. O sistema de categorias interpretativas que os petistas utilizam para explicar seus êxitos e para explicar suas adversidades é um sistema conceitualmente pobre e mecanicista. Não lhes permite, portanto, dar conta das contradições que alcançam e atravessam sua prática porque os priva da consciência da historicidade própria da práxis das categorias sociais em nome das quais falam e agem. Embora Dilma e Lula falem o tempo todo em nome da história: a história ruim, que passou, e a história boa que inauguraram: “nunca antes na história deste país” é um bom exemplo de afirmação dessa concepção de história, a própria e a alheia. Um componente religioso faz o PT conceber-se como protagonista único da história, numa curiosa fusão da concepção marxista vulgar da História, de que o proletariado é o ator final do processo histórico, com a escatologia católica, dos pobres como depositários sem pecado da missão redentora da salvação, personificações de um ideal profético da redenção humana de todas as misérias, mesmo as misérias materiais. Nessa concepção, o processo histórico é prisioneiro de um movimento pendular e mecânico que oscila entre o bem e o mal, mesmo quando o bem esteja contaminado pelas células do mal, acobertadas pela teatralidade da vida cotidiana, quando já não somos nós mesmos, subjugados mais pela necessidade de fingir do que pela necessidade de ser. Do mesmo modo, o mal submergiu nas profundezas do inautêntico, inocentado e acobertado pelo fingimento por meio do qual nos expressamos. O que as investigações e revelações dos anos recentes tem feito, aqui no Brasil, é levantar esse véu da duplicidade própria da sociedade contemporânea, em busca do autêntico que já ninguém é nem na política nem na vida comum. Os supostamente éticos se surpreenderam por terem sido descobertos como não éticos, acusados e removidos. Os outros, do outro lado, nem se surpreendem, apesar de satanizados e estigmatizados por seus adversários, por terem sido descobertos como úteis e necessários à remoção das contradições para destravar o processo histórico. Cada qual cumpre a missão oposta à dos equívocos ideológicos de sua consciência social e política. É nessa perspectiva que se pode avaliar de modo abrangente os impasses deste momento, sobretudo seus desdobramentos no que poderá acontecer tanto com o PT quanto com os partidos aos quais o PT se opõe. Os partidos opostos ao PT são doutrinariamente frágeis, sem bases nas massas ativas. Com exceção dos partidos em que a influência evangélica é decisiva, cujas bases estão mobilizadas ativamente em defesa de valores sociais caros às suas doutrinas religiosas. Na aba conservadora do processo político brasileiro, doutrinariamente coesos, tem tido condições de eleger quadros, em todos os âmbitos, que os tornam sujeitos significativos da realidade política. Com a mesma consistência, na aba de esquerda do processo político, está o PT. A admissão do processo de impedimento da presidente da República está longe de desmantelar seu protagonismo político. Ao contrário, poderá reforçá-lo significativamente. Toda ideologia de base do partido é a da vítima. O PT cresceu em nome dos trabalhadores, mas sobretudo em nome dos pobres, dos historicamente injustiçados, como as mulheres, os negros, os indígenas, os desvalidos. Cresceu como adversário do capital, em particular do capital internacional e sua ideologia neoliberal, pai de todas as injustiças, há 500 anos, desde quando o capitalismo ainda não existia. A vítima mobiliza sempre. A compreensão do futuro do PT depende de compreendermos o que aconteceu com esse legado ideológico. A começar do elo essencial entre o partido e a classe trabalhadora. Desde o surgimento do partido, a industrialização sofreu transformações profundas. O próprio Lula, se decidisse voltar para a fábrica, descobriria que sua profissão de torneiro-mecânico já não existe. Foi substituída por computadores, que não fazem greve, não reclamam, não pedem aumento. Desde a formação do PT, o capital variável, o do trabalho, encolheu em face do capital constante, o da máquina. O capital mudou de composição à custa da crescente insignificância do trabalho e da pessoa que trabalha. Esta é a sociedade do desemprego, dos que foram descartados pelo sistema produtivo. Para que esta sociedade funcione, é necessário que haja sempre desempregados. São eles que tornam o trabalho barato para o capital. Portanto, a classe operária da formação do PT já não é mais a mesma. Os filhos do proletariado dos tempos de Lula ascenderam para a classe média, mergulharam na sociedade de consumo, já não aspiram apenas ao salário, tornaram-se adeptos do capitalismo, conservadores e até reacionários. As eleições no ABC mostram isso cada vez mais. Um outro setor decisivo na formação do PT foi o setor católico, das comunidades de base e da aguerrida base dos trabalhadores rurais sem terra, informalmente ligados à Igreja. No entanto, esse grupo está muito modificado. O episcopado já não tem pelo PT o mesmo apreço de antes. Em 2003, Lula foi entusiasticamente acolhido na assembleia da Conferência Episcopal. Não há nenhum indício de que os bispos se dispusessem, hoje, a repetir o ato. Ao longo dos últimos anos, não só Lula descartou os militantes católicos do PT que faziam a ligação entre bases sociais do governo e a CNBB, como os bispos reduziram significativamente sua proximidade com o partido. Antes mesmo que o PT surgisse, uma parcela dos agentes de pastoral formou o MST, libertando-se da tutela dos bispos. Foram ativíssimos no enfraquecimento do governo FHC, com as ocupações de terras reguladas pelo calendário eleitoral. Mas foram enfraquecidos pelo surgimento de mais de setenta organizações similares e dissidentes. Foram decisivos na eleição de Lula. Mas quando Lula assumiu a Presidência, tratou, em pouco tempo, de esvaziar o protagonismo dessa organização, xiita, como ele a denominava, sobretudo com a criação da versão petista do Bolsa Família, que acabou instituindo uma tutela sobre 42 milhões de pessoas, capaz de esvaziar um campo decisivo no recrutamento de militantes do movimento. O futuro do PT não poderá depender da reconstituição de suas bases de origem, que foram as bases do PT radical e demolidor. Elas foram minadas pelos próprios governos petistas, mais por Dilma do que por Lula. O PT se aliou a inimigos históricos dessas bases. Vai ser difícil justificar essas alianças e ganhar novamente a confiança dos que foram deixados para trás. No entanto, Lula tem um carisma próprio e resistente que poderá dar ao partido novas oportunidades, especialmente num cenário em que os outros partidos estão enfraquecidos e desgastados. Talvez uma nova geração de dirigentes possa valer-se de Lula para reconstituir o partido, promovendo internamente uma rotação de elites. No entanto, a principal arma que o PT começou a brandir, no dia da condução coercitiva de Lula à Polícia Federal, foi a da ameaça do “posso incendiar esse país”. Pode. Várias demonstrações tópicas da ação de multidões tem se espalhado pelo Brasil, raramente com clareza suficiente para agregar simpatizantes e aderentes. O PT poderá eleger não só o governo Temer como alvo desse ímpeto incendiário. Mas os partidos que historicamente foram escolhidos por sua obsessão antagônica desde a disputa entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, em 1998, já não estão desabrigados. Estão munidos e documentados de todos os problemas que o PT deixa, justamente, nos campos mais nobres de suas promessas não cumpridas ou mal cumpridas. O PT de 2016 é um partido desprotegido e frágil, ainda que possa mobilizar multidões para vingar a derrota da eficácia de seu milenarismo, cujo governo está em julgamento. A consigna de considerar que a guerra ainda é a dos éticos do PT contra os maus das oposições não resistirá à metamorfose dialética que converte os opostos no seu contrário. *José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto) e de Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder (Contexto). voltar |
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