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Acadêmico: Gabriel Chalita Em artigo publicado no jornal Diário de S.Paulo dia 15 de maio, Gabriel Chalita escreve sobre relações familiares e recomeços.
Em uma universidade, pai e filho sentam juntos na mesma sala. Resolveram cursar engenharia. Já estão no terceiro ano. O pai sempre foi ausente. A bebida roubou-lhe o convívio. As agressões eram constantes. Um dia, a mãe partiu e levou os filhos. O pai não se importou. Melhor assim. Já não gostava daquela mulher que se tornara resmunguenta, na sua opinião. Virou uma espécie de acusadora. Queria que ele escolhesse entre ela e a bebida. Isso o importunava. Não se exigem escolhas alheias. Isso os afastava. Os tempos de desejo eram passado. Vez ou outra, ele agia com alguma violência para demarcar território. Que história é essa de mulher dizer a ele o que deveria ou não ser feito? Deu de ombros à partida da mulher. Não haveria de encontrar outro homem e voltaria, decidiu ele. O tempo passava e ela não voltava. A solidão o incomodava tanto ou mais que a presença daquela incômoda. Tentou a reaproximação. Não teve sucesso. Acusou-a de ingrata. Vomitou xingamentos de toda ordem. Deve haver algum homem. Mulheres não são fiéis. Fingem companheirismo, mas ao primeiro espaço preenchem sem se importar com o que viveram. E foi dizendo. As palavras eram desconexas. Acusações e humilhações. Ela resistiu. Sabia que os filhos adolescentes ouviam. Havia trabalhado o dia todo. Estava cansada. Mas resistiu. Na sala, só a voz dele se ouvia. Foi quando o menino saiu do quarto. Olhou para o pai e pediu que ele fosse embora. Que ele roubava a paz. As duas filhas eram menores e tinham medo. Ele deu um tapa no rosto do filho e partiu. O tempo passou. O filho cresceu um pouco. E se encontraram novamente. Em um bar. O pai estava bebendo quando o viu numa briga. O filho havia bebido também. Sangue jorrava de uma fresta aberta pouco acima do olho. O filho estava tonto. Ele tirou os curiosos e abraçou o filho. O filho parecia não reconhecê-lo. Foram juntos ao hospital. Ninguém acreditaria que o pai, naquele estado, pudesse cuidar do filho. Alguns pontos, alguma costura, alguns cuidados e o menino podia voltar para casa. O pai o levou. Falaram pouco. A mãe não estava. Estava trabalhando. O filho dormiu. O pai olhou para ele e jurou que mudaria de vida. "O futuro do meu filho depende de mim", entendeu ele. Adormeceram juntos. Chegou a mãe e não entendeu. O pai chorou. Chorou muito. O filho acordou assustado. Falaram tudo o que pouparam nos anos de pouca convivência. O menino já era homem. Escolheu uma vida errática. O pai pediu que convivessem novamente. E aconteceu o que eu presenciei. Pai e filho em uma sala em uma universidade. Deixaram a bebida. O menino, depois de alguma dificuldade, deixou as drogas. E o futuro apareceu. O relato foi emocionante. O pai voltou para casa. A mulher demorou a aceitá-lo, demorou a acreditar em recomeços. Ainda o amava, mas temia as recaídas. Nunca houve recaída. A visão do filho caído, sangrando. A visão de um futuro sem futuro. A visão de sua ausência perigosa fez dele um pai. Disse o filho que o pai é muito estudioso. Disse o pai que o filho é mais rápido do que ele para aprender. Disse o filho que o pai virou um homem muito romântico. Disse o pai que o filho é bonito como a mãe. E foram os dois falando sobre os dois. E eu fiquei imaginando a força dos laços humanos. As reconstruções que são possíveis quando há amor. As duas irmãs pretendem cursar a faculdade no próximo ano. São gêmeas. O pai ainda me disse que não teve pai. Que o perdeu quando tinha 5 anos. A mãe cuidou dele sozinha. Entre trabalhos e problemas. Disseram que me convidariam para a formatura. E pediram que eu autografasse um livro para a mãe, para a mulher. "Escreva, por favor!", pediu ele, "Para a mulher mais linda do mundo". O filho sorriu. Feliz por viver outro tempo com um outro pai. Eu escrevi. E escrevo em homenagem aos que caíram e que conseguiram se levantar para cuidar de alguém. Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 15/05/2016. voltar |
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