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15/7/2016
JOSÉ RENATO NALINI PARTICIPA DA SEMANA GUILHERME DE ALMEIDA
Acadêmico: José Renato Nalini
O Acadêmico e secretário do Estado de Educação, apresentou, dia 04 de julho, a palestra Guilherme de Almeida e a Revolução de 1932, na Academia Campinense de Letras (ACL). A apresentação faz parte da Semana Guilherme de Almeida, criada com o objetivo de revisitar a vida e obra do campineiro também conhecido como “Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Confira o texto.

GUILHERME DE ALMEIDA E A REVOLUÇÃO DE 32

José Renato Nalini*

"Muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem" . Assim Guilherme traduziu o primeiro verso de Antígone, transcrição com rigor musical do grego para o português. Guilherme enfrentava o desafio das traduções com talento de recriador. Foi como transcreveu a "Balada das Damas dos Tempos Idos", de François Villon, "a linda e filosófica indagação sobre a perecível grandeza do mundo, a bela e heroica balada da fuga melancólica do tempo, levando, desfeitas, todas as soberbas e formosas damas de idos dias, como neves de velhos invernos, que foram joias ao sol e se desfizeram em lama da terra..." .
Traduzir, em realidade, é recriar. Guilherme confessa tal predileção como um "já-vício de traduzir", que a ele não permitia se esquivar à volúpia de tentar versão em português, de sonetos quinhentistas como os de Joachim du Bellay, tipicamente um poeta do Renascimento, "catorze primorosos, citados, recitados e decorados catorze versos" .
O gênio de Guilherme já havia sido detectado há um quarto de século antes dessas traduções. Pois em 8 de junho de 1917, as livrarias de São Paulo expunham o livro "Nós", verdadeiro poema de amor em 33 sonetos de feição clássica . Sobre essa obra de estreia, Amadeu Amaral escreveu: "Os sonetos do sr. Guilherme de Almeida desenrolam-se em torno de um episódio comum de amor: falam de ternuras, de cuidados, de sustos, de pequenas nuvens de sonhos, que morrem, de separação e de saudades. Mas os casos de amor, por muito comuns que sejam, nunca são banais. O amor é sempre interessante, porque, se em cada caso se repetem eternamente as mesmas emoções e as mesmas cenas, a maneira de reagir e sentir é sempre agudamente individual e sempre nova" .
Guilherme experimentou a glória em vida e continua a merecê-la quarenta e sete anos depois que nos deixou. Foi em 24 de julho de 1890 que nasceu em Campinas, filho de ilustre professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o jurisconsulto Estevam de Araújo Almeida e de Angelina de Andrade Almeida.
Aprendeu a ler em sua casa, orientado por seu pai, exímio cultor das letras, fez o ginasial em Campinas - 1902, em São Bento, na Capital - 1903-1904 - em Pouso Alegre das Minas Gerais - 1904-1905 e, finalmente, no Nossa Senhora do Carmo em São Paulo - 1906-1907, onde se bacharelou em Ciências e Letras. Formou-se em Direito em 1912 e já publicava seus versos. Em 1916 entrou para a redação de O Estado de São Paulo e exerceu a advocacia no escritório do pai, até 1923, quando se casou no Rio com Baby Barroso do Amaral de Almeida. Um ano antes fora um dos próceres da Semana de Arte Moderna.
Sucedeu ao pai na Academia Paulista de Letras em 1928 e em 1930 foi eleito para a vaga de Amadeu Amaral na Academia Brasileira de Letras. Prolífico na produção intelectual, foi alvo de incontáveis homenagens. Como aquela realizada na Academia de Letras da Faculdade de Direito de São Paulo, na sala Barão de Ramalho, por ocasião do Jubileu de "Nós". Estiveram presentes, dentre inúmeras outras personalidades, o Presidente da Academia Brasileira de Letras, Embaixador José Carlos de Macedo Soares, o Presidente da Academia Paulista de Letras, Altino Arantes, o Secretário Perpétuo René Thiollier e os acadêmicos Goffredo da Silva Telles e Roberto Simonsen.
Ao agradecer, Guilherme encantou os presentes, porque era um "causeur". Permaneceu assim até o final de sua existência. Tive o privilégio de testemunhar, em várias oportunidades, o poder de sedução do Príncipe dos Poetas brasileiros, porque era também frequentador da Fazenda "Campo Verde", de Dulce e Victor Geraldo Simonsen, na divisa Jundiaí-Jarinu, onde D.Baby e Guilherme passavam temporadas.
Mas nessa noite no Largo de São Francisco, Guilherme subordinou sua fala ao tema "Eu por mim mesmo", esclarecendo que o "Eu", na verdade, era o "Nós", seu livro de estreia. Contou seus primeiros passos na poesia, num colégio interno, cujo "padre vigilante" arrebatou seus poemas por considerá-los impróprios.
A participação de Guilherme na Revolução Constitucionalista de 1932 foi consequência do amor vivenciado em exuberante plenitude. Quem amou as mulheres com tamanha intensidade, não poderia dedicar à Pátria Paulista um sentimento frouxo e tíbio. Envolvido física e emocionalmente na guerra de Piratininga, foi exilado e passou um ano na Europa. Já era famoso. Em 22.12.1932 foi recebido, com todas as honras, na Academia das Ciências de Lisboa.
Seu irmão, Tácito de Almeida, serviu como auxiliar de comando geral da praça de Cunha e ali prestou inestimáveis serviços à causa paulista. Foi ali que o juiz de direito Pedro Martha, preso pelos tenentes outubristas, astuciosamente mentiu, para salvar os paulistas .
Para explorar seus sentimentos íntimos de puro lirismo, o poeta usou de sua imaginação. Para defender sua terra, não fugiu à verdade da guerra. Eterna luta entre imaginação e verdade, objeto de um texto instigante - Em torno de Keats - página pública de um caderno íntimo, em que Guilherme observa que em 1817, quatro anos antes de morrer, John Keats escrevera: "A Verdade, surpreendida pela Imaginação, pode ser comparada ao sonho de Adão. Adão acordou e percebeu que seu sonho era verdade...". Lembra então um pensamento seu, inserto no prefácio de "Narciso": "A Verdade é o tédio da Imaginação". E complementa: "Hão de encontrar-se" ... Imaginação e Verdade: "É - precisa e preciosamente - a história de todos os amores humanos. "Ela" - a mulher imaginada - "existia antes, previamente, no sonho cristalizador do homem: o sonho que conforma, enfeita, estiliza, sublima e diviniza. Um dia, esse sonho "acontece". Há alguém, entre os mortais da terra, que corresponde a ele: que é pilhado em flagrante delito de coincidência; que é a Verdade surpreendida pela Imaginação. Mas é preciso que a Imaginação continue, como continua a Verdade. Senão... Senão, será o efêmero, o falível, de quase todos os amores humanos" .
O que não se mostrou efêmero e falível foi o amor de Guilherme por São Paulo. Amor evidenciado na presença física, esta sim efêmera, na trincheira e na eterna trincheira da poesia.
Pois imperecível mesmo, na Revolução Constitucionalista vista e experimentada por Guilherme, foi sua poesia. Ela o acompanhou durante toda a vida e permaneceu como testemunho eloquente, para lembrar às futuras gerações, o que significou para São Paulo esse episódio dignificante.
Compenetrou-se do significado da Revolução Constitucionalista, que começou muito antes de 23 de maio de 1932. Mas esse acontecimento passou a habitar, em caráter definitivo, a consciência do poeta:

"Há dezoito anos, no dia de hoje, qualquer coisa aconteceu em São Paulo que... que ficou anotado num meu obscuro, desconhecido caderninho de reminiscências. Numa página que diz assim: "Quem viu essa onda (eu ia escrever "humana": é pouco), sobre-humana, e deslizou com ela, e foi à sua mercê pelas escarpas, pelos desfiladeiros, pelas lombadas e pelos vales desta terra de Piratininga, sob o voo de uma bandeira listada ; quem, nesse dia, foi povo, mais do que isso, foi povo paulista, sabe bem que aquela onda era uma onda pura, que não trazia no bojo arfante ou na crista crespa monstros marinhos disfarçados, salsugem, algas podres, detritos de naufrágios...; que era apenas uma onda de sangue bravo, valendo só pela unidade da sua massa e pelo seu impulso espontâneo e vital; onda que vinha da praia de um São Vicente de há quatro séculos, trazendo ainda um livre perfume de mato das conquistas, e um ímpeto dilatador de fronteiras e afugentador de horizontes; onda, a mesma sempre, que, assaltando, um dia, as águas exíguas do Ipiranga, estacara-lhe as margens, engrossara-lhe o volume, propulsionara-lhe a correnteza, transformando o humilde afluente numa imensa e inesgotável caudal de independência... Quem foi povo, nesse dia, e povo paulista, há de agora estar sentindo fundamente a sua própria glória - a glória de haver dado aos homens deste século a maior e melhor lição de civismo; a de haver provado ao mundo que ainda havia um recanto no mundo onde, muito mais do que a força física, valia a força moral".
E continua, num texto de profética atualidade, a considerar a urgência de uma profunda reforma política nesta sofrida República:

"Isso está escrito no pobre canhenho, sob quatro letras que então começaram a resumir São Paulo: todo esse São Paulo que depois se dividiu e subdividiu numa incontável trama alfabética de outras e outras iniciais: PSD, UDN, PTB, PDC, PSP, PRP... Estas letras significam "partidos". Aquelas, em vez de "partir", juntavam: MMDC... Lembram-se?" .

Em 9.7.1946, Guilherme publicava a candente Alma Paulista:

Nesta data santa da nossa santíssima rebelião;
nesta celebração do nosso despertar
por nós mesmos em face de nós mesmos;
neste autêntico aniversário de São Paulo; neste dia
a que a consciência de nós todos chama o Dia da Consciência:
- do sagrado Planalto ergo ao céu alto
a minha prece firme de firme fé paulista.

Já catorze anos, hoje...
Anos ou séculos? semanas ou meses?
horas ou dias? segundos ou minutos?...
Seja o que for, ou quanto for - é igual.
Descobrimos em nós uma alma: e o Tempo não existe
para a divina eternidade da alma.
Conspire contra ela o corpo negativo,
efêmero e falível,
fechando-a no seu cerco de fraquezas e ambições
e ceticismos e indiferenças e deserções
e comodismos e hipocrisias e até traições,
embora sempre dentro
de matéria corrupta e corruptora,
a alma é a nossa genuína eternidade.
No pior instante, que é este instante de hoje,
do pior dos mundos, que é este mundo de hoje,
ainda existe apesar de todos e de tudo,
miraculosamente existe ainda
a Alma Paulista.

Existe, sim, puríssima, tal qual nasceu,
por uma noite legendária,
das garoas de julho conspirando
sob as arcadas franciscanas de uma escola que é uma Pátria.
Existe, sim, puríssima, tal qual nasceu
da equiparação uniforme e paralela
das tropas partindo, marchando, formadas,
listando de faixas direitas a terra,
como as tiras iguais de uma bandeira.
Existe, sim, puríssima, tal qual nasceu
dos lábios maternos pousando na testa sem medo,
talvez para a última benção,
talvez para o último adeus.
Existe, sim, puríssima, tal qual nasceu
da irmanação consanguínea da trincheira como um beço,
sob um docel de estrelas e metralha.
Existe, sim, puríssima, tal qual nasceu
das mãos encontrando-se à boca dos cofres
para deixar seu ouro todo;
ou nas mesas das oficinas,
para coser fardas ou carregar cartuchos;
ou na promiscuidade das cantinas,
para dar de comer e de beber;
ou no silêncio lívido dos hospitais,
para enxugar lágrimas ou cerrar pálpebras...
Existe, sim, puríssima, tal qual nasceu
da carta lida de mãos-postas na prisão,
ou do pão repartido de joelhos no exílio...
Graças a Deus e graças a nós mesmos,
ainda existe, apesar de todos e de tudo,
miraculosamente, a Alma Paulista.
Existe, sim. Mas, onde está ela agora?
Quereis vê-la, toda intacta, agora e sempre?
- Paulistas, de verdade, olhai para nós mesmos!

O amor de Guilherme por São Paulo é um clamor à nossa consciência patriótica. A tradição bandeirante é de heroísmo, coragem, crença inabalável nos valores que dignificam a humanidade. Onde foi parar o brio, o protagonismo, o orgulho de Piratininga, no momento em que a nacionalidade enfrenta a policrise que é, em primeiro lugar, uma epidemia de baixa-estima?
Por que já não se cultiva o acendrado amor à Pátria, a vontade de defendê-la, de fazê-la maior e mais respeitada?
Guilherme chamou a bandeira das treze listras de "A Santificada", título de um poema-símbolo de sua devoção à causa de 32:

À Santificada

Voltas ao nosso reduto
Com sete tarjas de luto,
Seis faixas brancas de paz
E teu penacho vermelho:
E São Paulo dobra o joelho
Ao beijo que tu lhe dás!

Vens... Tu foste a condenada,
A réproba incinerada
Que de um ímpio auto-de-fé
Deixa na História um resumo:
Negro carvão, branco fumo,
Vermelha flama de fé.

Retemperou-te a fogueira:
Vens como vinha a "bandeira"
Da fornalha do sertão;
Santificou-te o suplício:
Repetiu-se o sacrifício
De Joana dArc em Ruão.

Voltas a nós, vigilante
Mãe, esposa, irmã, amante,
Noiva e filha! Voltas! Pois
É preciso que se prove
Que existiu um dia nove
De julho de trinta e dois;

E há uma velha Faculdade
Que, ensinando a mocidade,
Com esta foi que aprendeu;
E houve um brazão mameluco
Que disse: "Non ducor, duco!";
E um São Paulo que disse "Eu!".

E houve uma noite de heroísmo
Que marcou o teu batismo
De glória: e por isso é que
tens quatro letras gravadas
Nas quatro estrelas doiradas
Do topo: MMDC!

Já a garoa, o nosso incenso
Beija o teu pano suspenso
Ao teu mastro, que é uma cruz...
Vês? É um altar em cada casa
Sobre a qual estendes a asa
Rajada de sombra e luz!

Fala! É preciso que fales
De tudo: de Fernão Sales,
De Cunha, Túnel, Buri
De Eleutério, da Pedreira
Do soldado e da trincheira
Que só falavam de ti!

Lembra a mulher da cantina,
Do hospital e da oficina:
Beleza do Nosso Bem!
E as crianças, num sorriso,
Jurando: "Se for preciso,
Nós partiremos também!"

Recorda a "Campanha do Ouro"
Acumulando um tesouro
Que nunca se esgotará!
Depois...a prisão, o exílio
A saudade, o nobre auxílio
Da mão distante que dá!

E agora...Agora de novo
Abençoando este teu povo
Que tanto soube esperar,
Esperança dos Paulistas,
Bandeira das treze listas
Desfraldada em cada lar.

Reza a oração que dizia:
"Preto e branco - a noite e o dia:
Pois dia e noite estarei,
como o Apóstolo-Soldado,
Gente Paulista, a teu lado,
Pola ley e pola grey" !

Atual e oportuníssima a lembrança de Guilherme e de seu contributo para a edificação de um culto justo, legítimo e consistente à devoção paulista.
Faleceu em 11 de julho de 1969 e "Guilherme, amado das Musas, porém, não se fechou na clássica torre de marfim da sua alta e fulgurante posição literária de grande poeta, como podia ter feito. Foi também tocado pelo sentimento profundo de amor à terra, à sua terra bem amada de São Paulo. E na Revolução de 32, misturou com o lirismo da sua poesia, o fervor do heroísmo, oferecendo a vida por aquele soberbo ideal de redenção, que arrebatou numa vertigem épica, a vida total da gente paulista" . Fervor heroico cultivado por Guilherme durante toda a sua existência física: "Lembro-me bem! Que alvoroço sacudiu meu corpo moço quando, à Lei montando guarda, refulgiu como um corisco pelo Largo de São Francisco, o cáqui da minha farda..." .
Calara-se a Grande Voz do Poeta, mas se iniciara o solene silêncio da imortalidade e o culto saudoso à sua memória.
Dez anos após sua morte, Paulo Bomfim, que o sucedeu no heráldico título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, já lamentava que São Paulo perdera sua aura gloriosa:

Carta a Guilherme de Almeida (no décimo aniversário de sua morte)

Guilherme:
Há dez anos você repousa na vigília do Mausoléu do Soldado Constitucionalista, a trincheira que jamais capitulou!
Os que ali se encontram estão invictos. Não transigiram, não esqueceram, não depuseram armas.
É julho novamente, o mesmo mês em que nos despedimos, os mesmos dias que você imortalizou com poesia e com sangue, nesse 32 que não foi uma revolução mas uma paixão - Vida, paixão e morte de São Paulo!
Dez anos são passados e tanta coisa mudou! Sua cidade está irreconhecível, violenta, poluída e martirizada. Do passado apenas umas igrejas, tias velhas rezando por sobrinhos perdidos! O resto são gritos de concreto e a chaga das favelas ulcerando periferias.
Nas ruas, um povo triste e agressivo luta pela sobrevivência.
As faculdades estão cheias de moços que desconhecem seus livros. Muitos professores omitem os poemas de aulas e antologias, simplesmente porque você representa São Paulo naquilo que ele tem de melhor!
Amigo, os emboabas estão dentro de nossos muros corroendo têmperas, apodrecendo ideais, deturpando memórias. "Delenda São Paulo", é o grito de guerra dos bárbaros que vão saqueando o chão de nossos mortos.
Nunca seus cantos de epopeia e "Minha terra, minha pobre terra", de Ibrahim Nobre, foram tão necessários.
Meu Poeta, a anemia espiritual destes dias está pedindo a transfusão do sangue generoso de seus versos. Falta vergonha, falta coragem, falta dignidade. Há uma inflação de moedas que já não representam o ouro de um sentimento nobre e a paixão desinteressada de uma causa.
A vida clama por generosidade. Os homens, esses cruzados sem cruzada, precisam de um tema para viver ou morrer. Tema ou lema, bandeira com as cores da honra de Piratininga, ou bandeira de bandeirante reconquistando dimensões que foram nossas.
Que estas palavras amargas levem a você, Poeta dos Paulistas, a saudade e o inconformismo de seu irmão em São Paulo" .

Nossa terra, nossa pobre terra, tão invejada, tão vilipendiada, tão explorada e tão procurada por todos - daqui e de longe - precisa recuperar seu orgulho e sufocar o constrangimento que a impede de clamar por isonomia. É prejudicada por uma República que suga seus recursos e nada devolve, mesmo sem desconhecer que todos - brasileiros e estrangeiros - a procuram qual Meca abençoada. Na presente crise nacional, foi o único Estado-membro a não parcelar salários, a não atrasar pagamentos, a não paralisar os serviços essenciais.
Guilherme de Almeida tem de ser invocado para recordar que São Paulo nunca temeu defender seus ideais, desde que justos e legítimos, na concepção democrática do convívio saudável entre os homens.
A criança, o adolescente, o jovem e o adulto de gerações que já não conviveram com os sobreviventes de 1932 desconhecem o que foi o heroísmo constitucionalista do povo de São Paulo. E o que foi 32?
"Foi a soma dos sonhos e do sacrifício de um povo, a confraternização de raças e condições sociais no batismo das trincheiras; o esforço das indústrias, o desprendimento do comércio, a grandeza de uma Causa, a generosidade dos moços, a participação dos cabelos brancos, o entusiasmo das crianças, a força que vem da Mulher-terra paulista, o verbo dos poetas e dos tribunos, dos jornalistas e dos sacerdotes; a sacralidade da lei, o fuzil ao lado do livro, a trincheira continuação da escola, a caserna dependência do lar, o campo de batalha - sementeira de Justiça!"
Nunca é demais louvar o 9 de Julho. Conforme enfatizou o Monsenhor José de Castro Nery, ao enaltecer o seu sentido espiritual, "o idealismo piratiningano tinha assim um firme embasamento e algumas colunas elegantes. Mas faltava-lhe a cúpula. Teve-a finalmente a 9 de julho de 1932. Nesta data São Paulo tomou consciência da sua vocação espiritual na evolução histórica do Brasil. Como bem o exprimiu um dos críticos da moderna geração literária, o 9 de julho vale tanto ou mais que o 25 de janeiro. O 25 de janeiro foi feito sem os paulistas. O 9 de julho não poderia ter ocorrido sem eles. ...Nove de julho é o grito da presença do espírito paulista, enquanto 25 de janeiro fora uma tomada de posição" .
É dever indeclinável de todo paulista patriota, inculcar nas novas gerações o incomensurável orgulho por 9 de julho. Pois "não foi a poder do dinheiro, com a mira posta nas posições, sob o impulso de apetites materiais ou subalternos, que São Paulo se arremessou na estacada vermelha da revolução. Foi pelo Direito, pela Ordem, pela Constituição de um povo livre que ele escreveu a mais bela página de sua história, mais lírica que a epopeia das bandeiras, mais rica de ensinamentos do que o episódio da Independência, mais eloquente do que a campanha abolicionista em prol do negro, mais miraculosa do que o milagre fácil do seu enorme potencial econômico realizado através do seu parque industrial" .

De igual maneira, constitui missão das Academias ressuscitar Guilherme. Fazer de sua obra o breviário, fazer de sua casa santuário, fazer de seu ideal um relicário. Visitar a Casa Guilherme de Almeida à rua Macapá, na capital. Território sagrado onde viveu o poeta e fabricou sua poesia, felizmente tombado pelo Governo do Estado e eternizada por Paulo Bomfim:

Casa de Guilherme de Almeida

"Era uma vez" o Poeta
Construindo na garoa,
Na rua das rimas raras,
A casa do "Encantamento".

(A brisa embala a mansarda
no acalento de São Paulo!)
"Era uma vez" as palavras
Das "Cartas que eu não mandei",
No chão de Piratininga,
E a argamassa de lirismo
Transfigurando as paredes,
Enquanto as horas dançavam.

"Era uma vez" um telhado,
O Poeta e sua Musa,
Na benção do "Messidor",
E tudo "Simplicidade",
E tudo tão "Nós" São Paulo,
Tudo "Meu" e tudo "Raça"
Florescendo em "Rosamor".

"Era uma vez" uma causa
E uma bandeira paulista,
A inspiração e o inspirado,
Guilherme e Baby sonhando
Seu grande sonho de amor.

Hoje a casa é monumento,
E o acervo de Poesia
É patrimônio do Ideal.
"Ontem, hoje e amanhã"
Saudade e esperança moram
Lá na rua Macapá.

Era uma vez o Poeta,
Uma asa que hoje é casa,
Nuvem, nume tutelar!

Quem a visitar talvez ainda ouça a Oração ante a última trincheira ou o Credo que Guilherme dedicou "aos épicos de julho de 32, que, fieis cumpridores da sagrada promessa feita a seus maiores - os que houveram as terras e as gentes por sua força e fé - na lei puseram sua força e em São Paulo sua Fé:

CREDO

Creio em São Paulo todo-poderoso,
criador, para mim, de um céu na terra;
e num Ideal Paulista, um só, glorioso,
nosso senhor da paz como na guerra,
o qual foi concebido nas "bandeiras",
nasceu da virgem alma das trincheiras,
padeceu sob o jugo dos invasores;
desceu ao vil inferno dos traidores,
mas, para um dia ressurgir dos mortos,
subir ao nosso céu e estar sentado
à direita do Apóstolo-Soldado,
julgado a todos nós, vivos ou mortos.
Creio no Pavilhão das Treze Listas,
na santa união de todos os Paulistas,
na comunhão da Terra adolescente,
na remissão da nossa pobre gente,
numa ressurreição do nosso bem,
na vida eterna de São Paulo - Amém!".

Comecei esta longa arenga a invocar o milagre portentoso que é a criatura humana, texto que Guilherme lapidou ao reinventar a Antígone sofocliana. Milagres continuam a existir, como o de um preito de tamanha relevância ao Príncipe dos Poetas Brasileiros, o campineiro, paulista e brasileiro Guilherme de Almeida. Uma das milagrosas primícias da humanidade. Portentoso milagre humano, a testemunhar que o homem continua a ser
"Senhor de arte e de engenho que ultrapassem qualquer sonho,
pode preferir tanto o mal como o bem.
Quando respeita as leis
e o juramento dos deuses,
é digno da pátria; mas é sem pátria
o que por orgulho o conduz ao mal:
esse não entre em minha casa,
nem comigo tenha um pensamento igual... "

Milagre que o Brasil espera, como a profética esperança de que venha a florescer o seco bordão com que procuramos atravessar esta escura caminhada por uma Nação à procura de um destino:

Segunda canção do Peregrino

Vencido, exausto, quase morto,
Cortei um galho do teu horto
E dele fiz o meu bordão.

Foi minha vista e foi meu tato:
Constantemente foi o pacto
Que fez comigo a escuridão.

Pois nem fantasmas, nem torrentes,
Nem salteadores, nem serpentes
Prevaleceram no meu chão.

Somente os homens, que me viam
Passar sozinho, riam, riam,
Riam, não sei por que razão.

Mas, certa vez, parei um pouco,
E ouvi gritar: - "Aí vem o louco
Que leva uma árvore na mão!"

E, erguendo o olhar, vi folhas, flores,
Pássaros, frutos, luzes, cores...
- Tinha florido o meu bordão!" .

* José Renato Nalini é membro da Academia Paulista de Letras, onde ocupa a Cadeira 40.




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