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Acadêmico: Francisco Marins "Deve-se afirmar, em conclusão, Senhor Acadêmico, que o ciclo atual de vossa produção é eminentemente paulista, paulista pelo tema, pela linguagem e sentido estético geral."
Nas cerimônias de posse, como esta, vemos a glória acadêmica em plena afirmação. Compreendemos também que ela não se confunde com a glória do escritor, de natureza um pouco diversa. A glória do escritor a pouco e pouco se prepara, por si mesma se afirma, e assim subsiste independentemente da manifestação de grêmios que a sancionem ou imaginem que o possam fazer. Ainda que repouse na obra de homens representativos nas letras, a glória acadêmica dessa difere: corresponde a movimentos da cultura no tempo, com infinitos aspectos e matizes. Quando, sem exclusão de qualquer gênero, concepção ou tendência estética, no domínio geral das letras, certo nível venha a ser demonstrado, então as academias se movem, para proclamar: "Este tem lugar aqui, este é dos nossos". Por que assim se manifestam?... Porque lhes cabe defender determinados valores, os quais, ainda que diversamente se exprimam através das épocas, dão substância à coesão social pelo poder do espírito. Ao falar de épocas, pode-se lembrar o dito mordaz do crítico que nelas não via senão "mudança de coisas, que nos provoque especial agrado ou desagrado"... Em relação às letras de nosso próprio tempo, assim se dá, inevitavelmente. Pois o que fazem as academias é contribuir para que os extremos se temperem, com a ponderação de que há razões de crença e motivos de ação, menos incertos, dignos de serem levados em conta através de mais dilatados anos. Dois pontos são exaltados pelas academias, onde quer que existam. O primeiro, de feição instrumental, refere-se à preservação da língua, matéria de comunicação entre os homens, base da cultura e reflexo também de seu instável equilíbrio. O segundo diz respeito ao sentido mesmo do trabalho dos escritores, para que possam ter superioridade em ver, sentir e interpretar o mundo. Em termos mais singelos, quando a tudo isso possam eles comunicar anseios de verdade e beleza, esperança e poesia. . . OS PREDECESSORES No discurso de há pouco, Senhor Acadêmico, em que estudastes as nobres figuras que aqui vos precederam, Amadeu Amaral e Altino Arantes, esses pontos capitais evocastes. Assim, no ato de depor a candeia de vossa devoção na ara de nossos numes, reconhecestes o credo comum, a fé nos valores que cultuamos, pelo exemplo dos que hajam passado. Amadeu e Altino representaram, de fato, grandes cultores do idioma. Também se inspiravam no mesmo culto à beleza, segundo os cânones de seu tempo. E não será demais dizer, como o deixastes entrever, que um e outro não só no mundo das letras culminaram, mas, assim também, no da vida comum, no terreno áspero onde os homens lutam, nem sempre escolhendo as armas. Pretendem os cultores da biotipologia que certa determinação existe entre feição somática e estrutura psíquica, e entre todo esse conjunto e a capacidade de dar formas à expressão pessoal - todas elas - não só as da linguagem. Considerada ao pé da letra, essa concepção conduz a discussões intermináveis, visto que exclui as influências de ordem social... De qualquer modo, ainda pelo aspecto de presença física e temperamento, como nos da expressão literária, havia em Amadeu e Altino mais semelhanças que diferenças. Nós outros, mais velhos, os que com ambos tivemos ocasião de conviver, ainda agora assim os relembramos. Estamos a vê-los no mesmo porte, alto e esguio; no passo largo, pausado e firme; nos gestos e mais expansões de ânimo, sempre comedidos; nos traços fisionômicos habitualmente tensos, dominados por um límpido olhar de franqueza. Também em ambos, sobre esse olhar, leve sombra de melancolia perpassava às vezes, ou, por instantes, luzia uma chispa irônica. . . Pacientes eram no ouvir, um e outro; amáveis, sem afetação; acessíveis a todos, ainda que só a poucos inspirassem aproximação maior, não porque tivessem a intenção de afastar pessoas, mas, pelo respeito natural que, às demais, suscitam aquelas dotadas de uma grande força interior, tendo consciência disso... Amadeu e Altino a em pregavam para unir e conciliar, congregar e apaziguar. Onde atuassem, exerciam domínio que não procuravam, amistoso domínio. Nem por outra razão, ambos serviram na presidência desta Casa, por vários períodos, sucessivamente reeleitos. Não obstante, fosse o poeta, fosse o orador, sempre que o sentimento do dever lhes impusesse determinados rumos, tornavam-se inflexíveis. Eram antes de quebrar, que de torcer. . . Exprimiam, enfim, perfeita dignidade pessoal, embora isso lhes tenha podido custar algum sofrimento, ou notas de franco estoicismo, de que não foi isenta a carreira de cada qual. Da política, a que Altino longos anos serviu, aceitava ele a definição de Rodó, como neste mesmo recinto, em certa solenidade, veio a declarar. Ele a queria, com simplicidade, como "a arte superior de aperfeiçoar a pátria e embelezar o mundo". Essa, a filosofia na vida pública, pois, na particular, como há pouco recordastes, o lema era o que inscreveu no pórtico de um de seus livros, e cujos termos sugerem um arco de aliança entre os céus e a Terra. . . No poeta de "Espumas", o mesmo respeito pelas formas mais nobres do viver, esclarecido por uma consciência sempre vigilante. Esse pensamento embebe muitos de seus poemas, e nesta simples estrofe encontra sua síntese: “Concebe um alto e claro pensamento que seja o teu abrigo e o teu reduto: não porque possa produzir-te fruto, mas, ainda que te renda só tormento...” Essa noção do dever, lei suprema, de feição voluntarista, Amadeu a ligava à conquista da beleza, mesmo de posse fugaz, como o aceitava Goethe, no primeiro "Fausto". É o que nos podem mostrar estes tercetos: "Perdeu-se tudo? Sim. Talvez não. A beleza, que em vagas de emoção torceu a turba erguida, não se perdeu, talvez, quem sabe! como o resto. . . E que importa afinal! Afronta essa incerteza, afronta a escuridão, glorificando a vida no minuto de luz que arde, às vezes, num gesto!" Nada de estranhar, portanto, que Amadeu figure entre os nossos maiores vates, cultores do Parnaso. Nem também que, nas crônicas paulistas, Altino possa ser apontado como o mais parnasiano de nossos políticos. OS ESCRITORES E O IDIOMA Sim, parnasianos ambos. As mesmas tendências romântico-idealistas os conduziam ao amor da forma, a velarem pela expressão mais pura; e, necessàriamente, àquele culto da língua, acendrado amor por ela. Crendo, como criam, em valores absolutos, seria natural que buscassem formas duráveis e, se possível, perenes. Mas, no exercício desse amor, como no de todos os mais amores, há mil modalidades. Sobem de número, não só pela diversidade das pessoas, como pessoas, mas, protagonistas do drama de todo dia. Cada escritor escolhe e depura as suas expressões, as faz e refaz, sem que, por si só, possa criar o idioma. Há de procurar, sempre, uma conciliação entre suas verdades e as contraditórias verdades dos outros. . . Ainda que se sinta livre, na realidade está preso a formas de expressões que existem, ou que, preexistindo, constituem a língua como realidade social, incontornável. O dilema do escritor provém dessa contradição fundamental. Artista deve criar, construir, inventar. Participante de um grupo, compete-lhe contribuir para a estabilidade e uniformidade do idioma. Até que ponto poderá inventar, inovar, sem que deixe de interpretar e possa ser devidamente interpretado? . . . Eis o difícil problema a que só a mesma liberdade dos escritores vem a responder. De qualquer modo, acertam, eles próprios, em duas tendências capitais. Numa, admitem que a língua deva ter a chancela de nitidez e pureza de mais continuado uso nos documentos escritos; noutra, cuidam que tal pureza não será comprometida quando acolha os modos da fala comum, realidades vivas da linguagem. Quando examinamos alguns trechos das formosas orações de Altino, vemos que seu pendor maior era por aquela primeira tendência. Perfeitas seriam as expressões mais elaboradas no tempo, batidas por ele, forjadas por ele, polidas por ele. Em Amadeu, ainda que igual reverência existisse pela integridade do idioma, outra fonte admitia como legítima; e, em S. Paulo, a da linguagem praticada em certos núcleos rurais, onde, por circunstâncias diversas, modos de dizer de genuína cepa portuguesa se tivessem abrigado. Aí estaria também a língua legítima, de igual sabor vernáculo. Quando, à sua época, copiávamos escritores lusos (dizia-nos ele), não estávamos repetindo, muitas vezes, senão expressões que tais escritores haviam colhido em povoações rurais de seu país. O caso de Camilo, Fialho, e mesmo de Eça, que tanto concorreram para imprimir maior plasticidade à língua escrita, era típico. Por que não proceder da mesma forma, preservada a índole geral do idioma?... O pensamento de que a língua devesse ter unidade tanto existia em Altino como em Amadeu. O que variava era o critério de seleção das fontes. Amadeu nascera em 1873 e fora criado em terras de Capivari, zona pobre de cana e mandioca, à qual não haviam ainda chegado as levas de imigrantes, com a confusão natural de linguagem. Muitos torneios vernáculos, genuínos, ele os ouvira, menino e rapaz, da boca do povo. Altino, por sua vez, quase ao mesmo tempo nascido em zona do café, e aí criado entre trabalhadores provindos de muitas terras, que não Portugal, havia de notar, na língua do povo, barbarismos e solecismos, desordem e confusão... O remédio lógico e natural seria preservar ao menos a língua escrita, segundo os textos clássicos, consagrados. Ainda um ponto a notar. Ao tempo em que passou a investigar as formas a que chamou "Dialeto Caipira" (isto é, aos fins da primeira grande guerra), Amadeu participava da reação neonacionalista, nessa época em ascensão. Altino não era infenso a esse movimento, mas entendia que a pureza da língua nada teria a ver com as expressões nativistas. Note-se, por fim, que ele havia recebido excelente ensino de humanidades, em moldes clássicos, ao passo que a ilustração do poeta resultava de autodidatismo. Ainda uma vez, neles se podia confirmar o dito antigo: Nascunt poetae, fiunt oratores... A PARAGEM NATAL Do que acabais de ouvir, Senhor Acadêmico, estareis percebendo para onde apontam estas observações à margem do discurso que proferistes, e que não só interessam à glória acadêmica de vossos predecessores, como ainda e também ao estudo de vossa própria obra, à glória do escritor, que sois. Foi, com efeito, no fastígio daquela aura de nacionalismo, ou seja, em 1922, já passado o centenário da Independência, que abristes os olhos ao mundo. Ou, para ser mais exato, aos primeiros dias do signo pugnaz do Sagitário. Por outro lado, nascestes numa curiosa paragem das terras paulistas, curiosa porque de sorte vária: em tempos mais recuados, ficava no eixo de uma linha de penetração dos sertões, o lendário caminho de Piabiru; mas, àquele tempo, estava isolada, com velhos costumes e modos de expressão correspondentes. Sois de brenhas do arco interior da cuesta de Botucatu, numa parte da serra em que a própria fisiografia a devia tornar insulada: de um lado, a via fluvial maior, o velho Anhembi; de outro, o caminho do Sul, via natural de comércio, por onde se fazia a renovação de coisas e idéias... Segregadas ficavam essas terras, junto às cabeceiras de um pequeno afluente do Rio Pardo, o do dessas brenhas, pois outros Pardos há por aí... Suas águas, como o de torrentes maiores, rolavam em sentido oposto ao de centros mais desenvolvidos, para os sertões ainda bravios do Paranapanema. Pois aí nascestes, nos arredores da bucólica Vila Pratânia, que ainda agora figura entre trechos de menor densidade demográfica, no Estado... À época, nem mesmo os estudos primários lá se poderiam fazer de modo completo. Quando os tivestes de concluir, teríeis de ser levado para a cidade grande, a capital da região, a alcandorada Botucatu. Em vossas próprias palavras, o menino tímido, "com o seu chapéu abudo e botinas de elástico", ao ser conduzido para esse centro, já aí havia de encontrar uma escola normal, criada pela boa política de Altino. Mas, ainda assim, não poderia abandonar os sentimentos de sua formação original, a de velhos costumes, modos de sentir e pensar, as vozes do pretérito... E, com isso, os eflúvios indomáveis da terra onde tivestes infância livre e feliz. Em seu coração, aquele menino a ela se atinha, conservando no peito, como na cabeça, as evocações desses primeiros tempos, pelas quais, nos dedos ainda frágeis, moldava o que se poderá chamar de "argila santa" dessas reminiscências... No ambiente novo, haveria de existir ainda alguma coisa similar ao da vila natal. A região era a mesma. Não mais, porém, em toda a sua pureza, aqueles valores da vida rural, que tão bem se casavam com as expressões da terra, das águas, do ar, não deixando perceber qualquer separação entre a paisagem natural e a paisagem humana, a das pessoas, a dos costumes... Já então, e tantas vezes depois, como devíeis repetir as palavras que, sobre a força da natureza, escreveu um homônimo do poeta de "Espumas", também nosso, o romancista Amadeu de Queirós. São as de um trecho em que, aqui mesmo, não faz muito, um outro sábio cultor do vernáculo, Carlos Alberto Nunes, veio a evocar. Ei-lo: "A minha roça é a flor da terra em que planto, nascida da pureza das águas de que bebo. Minha terra não tem imundícies nem podridões: é uma terra limpa que tem o cheiro bom de raiz. A gente gosta de cavá-la, porque é macia e tem-se confiança quando se lhe entrega a semente, porque ela cria com amor as plantas recém-nascidas. Mora nela a água que nasce no meu domínio e vive contente, correndo e cantando, que brinca nos pedregulhos, salta do morro abaixo e vai deitar-se nas chapadas. Minha água não é levada por ninguém, nem carrega defuntos; carrega só os raios de sol, o azul do céu e a frescura dos ares. E o meu ar é como a terra e como a água, de tão puro; ar virgem de boca humana, ar que vem dos matos e deixa longe a poeira venenosa dos homens. Ar que entra macio pelo peito adentro e me sai pelos olhos num êxtase, e pela boca num sorriso"... De uma igual terra, e água, e ar, vos sentistes furtado na cidade, ou nas cidades que iríeis habitar. Toda a vossa aventura íntima passou a ser, desde aí, a reconquista do mundo da infância, a reconquista dele pela fabulação, moldando sempre aquela argila sagrada, e de muitos modos, pelo que vos faríeis escritor, fecundo e original. OS PRIMEIROS ESCRITOS Fostes precoce em pequenos ensaios literários, bem diversos naturalmente das composições de tipo escolar, e, neles, deixando a princípio marcado o conflito entre tais reminiscências e os perigos que víeis em novas formas de cultura que vos eram oferecidas. Um deles, desse tipo, representaria cometimento útil, porque logo vos daria a convicção da terrível arma que é o papel impresso. Foi o caso que, para o suplemento infantil de um dos matutinos de São Paulo, começastes a enviar capítulos de uma novela. O cenário era uma região inóspita, habitada por certo homem sem orelhas e temíveis gorilas, em luta por uma cidade fortificada. O símbolo, na visão de psicanalistas, poderá parecer transparente. . . Seja como for, publicados os primeiros capítulos, surgiu uma ameaça à continuação de tal obra-prima de um menino de treze anos... E que, por economia, o suplemento esteve ameaçado de desaparecer. Contudo, tais e tantas foram as cartas recebidas pelo jornal, missivas aflitas de leitores ansiosos pelo desfecho, que a interrupção anunciada teve de ser transferida... Conta-se que Ponson du Terrail, cansado de seu herói Rocambole, deu-lhe morte; e que habitantes de Paris organizaram uma manifestação pública de protesto, levando o escritor popular a ressuscitar a personagem. Vossa façanha foi ainda maior, porque não constou apenas de algo de vossa própria decisão. Menino do interior, e aí, de longe, levastes a administração da empresa mantenedora do matutino a voltar atrás na idéia de sacrificar o suplemento... E, até o último capítulo de vossa tremenda história, veio ele a ser mantido. Esse primeiro acesso literário teve recidiva, agora de parceria com um colega da mesma idade, Hernâni Donato. Subiu mais a febre, a ponto de levar-vos a alterar as possibilidades geográficas de umas tantas ilhas do litoral... A revista infantil iniciou sua publicação mas, em meio, objetou algo a respeito. Os autores mantiveram-se inflexíveis: "ou como está, ou nada..." E não foram publicados os capítulos finais desse trabalho, precursor das novelas radiofônicas de agora... A essa fase seguiu-se a de escritos na "Folha de Botucatu" e num jornal de estudantes, que nessa cidade fundastes. Já aí deviam mais serenamente refletir a nostalgia das paragens natais. Uma série desses escritos teve o título de "Contos Sertanejos", bastante expressivo. Outra, de esboços de crítica literária, recebeu denominação que recordava frutos silvestres daquelas terras. Que não se perca pela originalidade: "Pitangas e Guabirobas"... Devia por certo sugerir que há composições, polidas e brilhantes por fora, mas de sabor acre e duros caroços por dentro; e, ao contrário, que outras há, de aparência modesta por fora, como as guabirobas, mas de doce e reconfortante suco. . . Então, os estudos de ginásio se tinham concluído e seríeis encaminhado para esta capital, a fim de vos preparardes para as arcadas do Largo de São Francisco. O objetivo declarado, já se vê, era o estudo das leis. Mas o desígnio secreto era outro, o da prática literária, com maior extensão e profundidade. Assim, na Faculdade, logo vos filiastes à sua Academia de Letras, aí existente, e da qual, não tardaria muito, seríeis o presidente. Sob vossa direção, ressurgiria a revista "Arcádia", fênix tantas vezes revivida... E, movido talvez por um sentimento de culpa, em menos compulsar os textos de lei, fundastes uma sociedade de estudos jurídicos, na verdade, outra academia literária. . . Desse modo, não só se fortalecia em vós o pendor literário, mas a sedução pelas companhias desse tipo. Aquele pendor havia de refletir-se ainda na escolha de um trabalho prático, para manter os estudos: seria ele encontrado numa: grande empresa editora, das maiores do país, onde persististes, e agora ocupais posto de relevo. Estava traçada a vossa rota, ao menos até o ponto de hoje, que esta reunião celebra. AFIRMAÇÃO DO ESCRITOR Realmente, ainda no curso jurídico, ou seja, em 1945, produzistes a primeira história a ser impressa em livro, "Nas Terras do Rei Café", destinada à leitura de crianças. Por sinal que os editores a quem oferecestes o trabalho entenderam de submetê-lo a um educador caturra, também ele com veleidades de escritor. As laudas dactilografadas não continham o vosso nome, nem o de ninguém. Depois de lê-las, assim mais ou menos se exprimiu o pedagogo: "Livro de boa qualidade. Se não me engano, estamos diante de um verdadeiro escritor". E, com a prudência característica da gente de sua espécie, mau grado o vigor do estilo, acrescentou entre parênteses: "ou escritora". Mas rematou logo, decisivo: "Desse escritor ainda havemos de ouvir falar muito". . . Esse vaticínio feliz não teria sido, porém, o primeiro. Quando, em mais tenra idade, enviastes o conto "Ritinha" a uma revista do Rio de Janeiro, "O Malho", não só publicou ela o trabalho, como lhe juntou uma nota pondo em dúvida que o autor só tivesse 14 anos, como informava, pois a história parecia de autor mais seguro, e bom escritor. O fato é que, à vista do êxito do primeiro livro, o do Rei Café, passastes, quase com precisão astronômica, a cada dupla translação da Terra, a dar um volume. Em conseqüência, respondeis agora por doze: cinco de literatura infantil, embora digam os catálogos que sejam mais; cinco de literatura juvenil, ainda que esses catálogos falem em menos; e, afinal, dois volumes, de uma obra projetada para mais, romance cíclico, em três composições seriadas, de que as duas, já conhecidas, têm respectivamente os nomes de "Clarão na Serra" e "Grotão do Café Amarelo". Passastes a responder também por um prêmio da Academia Brasileira de Letras, e outro da Associação Brasileira de Escritores, que coroaram duas de vossas obras juvenis; e, como se isso não bastasse, no alforje das glórias, metestes outras duas cobiçadas láureas: a do melhor romance de 1964, outorgada pela Prefeitura de São Paulo, e o Prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro, no ano seguinte. Ainda mais: de uma das novelas juvenis tirou a Universidade de Londres versão inglesa, na série de primores internacionais da espécie. Quase ao mesmo tempo, uma editora de Barcelona lançou a tradução espanhola de sete de vossos livros. E, se algum dentre nós, nestes últimos tempos, haja visitado Budapeste, aí terá visto, nas montras dos livreiros, um volume com o vosso nome e este estranho título "az Aranybányak Titka". Pois tudo isso corresponde ao nome, para nós mais fácil, de "Expedição aos Martírios", uma de vossas novelas. . . De modo que, tudo somado, e bem conferido, quando há poucos meses batestes à porta desta Academia, juntando, à guisa de licença, aquele apelo tão nosso, "Ó de casa!... ", houve um coro de respostas, mais ou menos como no conhecido poema de Manuel Bandeira: "Vá entrando, seu Marins! A bem dizer, voismecê não precisa pedir licença...". SINGULARIDADE DA OBRA É que a licença, Senhor Acadêmico, já a havia pedido a vossa obra, extensa e original. Entre outras singularidades, tem ela uma que deve ser especialmente apontada. É a de se ter processado em três lances, ou ciclos sucessivos e correspondentes à ordem natural das grandes idades do homem: histórias para crianças, novelas juvenis, romances para gente grande. Não há caso igual, em escritores de nota, seja no país, seja no estrangeiro, ao que saibamos. Normalmente, o escritor dessa classe começa a escrever para adultos. Ainda que o nosso velho Machado haja dito que se contentava com cinco leitores, isso teria sido apenas maneira de dizer. Todos nós, que escrevemos, aspiramos ao maior público e, assim também, ao público maior, o de gente grande. Ora, entre as regras de composição, para isso, não está a de que tenhamos de escrever na ordem das idades. Nalguns poucos casos, obras para adultos tornaram-se leitura atraente para crianças e jovens, mas essa é outra história. Está nesse caso "A Vida e muito Maravilhosa Aventura de R. C. York", de Daniel Defoe, publicada em 1726, e que se tornou mundialmente conhecida com o nome de "Robinson Crusoé". Quase da mesma época, igualmente, as viagens de Gulliver, do amargo Swift. Também, originariamente, não foram escritas para crianças as coletâneas folclóricas dos irmãos Grimm, a exigirem adaptação severa para que pudessem transitar por mãos inocentes. Quando grandes autores se tenham dedicado a escrever para crianças, jamais tal produção foi a primeira. Vede o caso de Mark Twain, de DAmicis, Kipling, Cantu, Selma Lagerloeff; entre nós, Coelho Neto, Viriato Correia, Monteiro Lobato, José Lins, Lúcia Benedetti, Sra. Leandro Dupré... E, ainda assim, na hipótese de freqüentadores bissextos do gênero, os nossos confrades Guilherme e Menotti, na prosa, e Cleómenes, na poesia. Podem alguns pensar que Hans Andersen tenha fugido a essa regra geral. Pura ilusão. Começou também pelos adultos, poesia e teatro, em que não teve êxito maior. Por desengano, passou a escrever para crianças. Bendito desengano!... É de sua época, aliás, nos meados do século passado, que provém o uso de material de leitura recreativa, para meninos e meninas, graças ao progresso do ensino popular e maior compreensão do papel da ficção no desenvolvimento da infância. Daí, o nome "literatura infantil e juvenil". Entendamo-nos, porém, a tal respeito. Derivada da literatura didática, a produção recreativa para crianças nem sempre é, nem pode ser, realmente literatura, criação literária genuína. Os editores metem na mesma classe material de variados tipos, formas e intenções, de que boa parte, sem dúvida, tem utilidade, mas a que o qualificativo de literário não se ajusta, por lhe escassearem reais virtudes estéticas. É evidente que a simples concepção do gênero implica a noção de certa adaptação às idades - psicológica, antes de tudo; a motivos de fundo ético, igualmente. Sem isso não se justificaria a existência do próprio gênero. Mas, para que se intitule "literatura", deverá revestir-se de certo valor estético fundamental. Não é segredo para ninguém que, em todos os países, proliferam composições para crianças, sem expressão de maior beleza, valor sugestivo, comunicação poética verdadeira. São, pequenas histórias, destinadas a incentivar o hábito da leitura, por sua feição simplesmente anedótica, ou burlesca, ou pelo encanto das ilustrações que ensejam úteis, ainda assim. Mas serão expressões de arte?... Claro que não. Representam "artesanato", mais que arte verdadeira, assim como uma espécie de tricô das letras: dois pontos adiante, dois pontos atrás, uma laçada, e tome pontos e laçadas, até a página final... Essa a razão por que o velho cético da Anatole dizia que a maior parte dos livros infantis não despertam senão enfado ou repugnância aos leitores a que se destinam. Para bem escrever coisas que as crianças apreciem não bastará que alguém se faça de idiota e leve os animais a falarem. Será preciso algo mais, e muito principalmente quando apareçam animais dotados de fala. Essa alguma coisa está na razão mesma que leve o escritor a produzir, certa provisão de sonho e fantasia, além, é claro, de um ingrediente, nem sempre encontradiço nas mais conceituadas praças literárias, ingrediente esse que acode pelo singelo nome de talento. . . A motivação do escritor, que bem o disponha a uma comunicação com o mundo infantil, essencialmente importa. Tornaram-se clássicos alguns inquéritos, entre autores, com esta pergunta inicial: "Por que você escreve para crianças?" As respostas mais constantes, nos autores bem sucedidos, perturbam um pouco, pelo menos à primeira vista. Podem elas ser assim sintetizadas: "Francamente, não sei bem por que, salvo que isso me dá prazer, ou que isso me alivia de certa inquietação interior..." Outro tipo de resposta, um pouco menos freqüente, pode ser assim resumida: "Como tenho filhos, ou netos, ou discípulos, (discípulos, neste caso, na relação afetiva de filhos ou netos), e com eles desejo estabelecer comunicação mais completa, entendo que isso só se consegue mediante histórias que lhes falem à imaginação, ou ao coração, mais que à inteligência. . ." MOTIVAÇÃO DOS LIVROS PARA CRIANÇAS No vosso caso, Senhor Acadêmico, a motivação parece ter sido a do primeiro tipo, pois não tínheis filhos quando começastes a escrever. O que parece certo é que a inquietação interior, o fermento das recordações de vossa infância, livre e feliz, à tarefa vos terão impelido, mais que outra coisa. Isso poderia compensar a nostalgia daquelas terras, e águas, e ar, de Pratânia... Havíeis de confirmar, enfim, o juízo de Ortega y Gasset, para quem as obras de arte têm de ser, sempre, "pedaços da vida humana, eles próprios dotados de vida, eles próprios também viventes"... O exame dos três lances, ou ciclos, de vossa obra confirma essa conclusão. Vossos livros para crianças, que admitimos sejam cinco e não mais, procedem de uma só e mesma motivação original, bem revelada pela constância do cenário e presença das mesmas personagens. Desses cinco, quatro formam uma história só, ainda que apresentada em narrativas autônomas. Todos revivem as paragens de Pratânia, num sítio aí chamado de "Taquara-Póca", em que vivestes em contacto direto com a natureza, suas graças e mistérios - alguns desses mistérios diretamente intuídos, outras apenas pressentidas nos motivos míticos de causos, ouvidos a nhô Lixandre, nhô Bento, ou nhá Candoca... Entre o mundo infantil e o dessas personagens, tão bem descritas, não havia qualquer separação, nenhuma quebra essencial: a mesmo sentido de um mundo primitivo, denso de ingenuidade, ao mesmo tempo que transparente a quem pudesse ter ouvidos para escutar-lhe os ecos e entendê-los. . . Nessa parte de vossa obra, recordais, sim, não os fatos apenas, mas as lendas, tanto mais poéticas quanta mais simples, coma a daquela flor roxa, que num minuto apenas, bem à meia-noite, esplende no recesso das samambaiais velhos, para logo extinguir-se, com estrondo... Artes do Capeta, sem dúvida, tanto mais quanto quem a possa colher terá o "corpo fechado", ou livre ficará de marte violenta e veneno de cobras... Mas essa flor, que pelo tom evoca os paramentos roxos das igrejas na semana santa, é tão difícil de ser apanhada, coma, na legenda de outros povos, o Pássaro Azul ou a Mariposa Amarela... A lição que de tal lenda decorre é que o bem e a beleza estão juntos, que o conteúdo e a forma, quando equilibradas e harmônicas, estão dotados de poder mágico, coisa que só os poetas, as crianças e aquelas boas almas simples chegam a perceber. . . Ou, então, em outra perspectiva, como se verifica em episódios dos livros a seguir, que também o dom da alegria pode suprir o que na aparência não seja bela, mas assim se revele no íntimo. É o caso da Curupira ou Caipora, menino disforme, mas ungido de bondade, com poder inigualável sobre a natureza - as coisas da floresta, especialmente. No seguimento das histórias, a resolução dessa dualidade manifesta certo sentido didático geral, também revestido de arte. Na primeira delas, apresenta-se na forma do Rei Café, símbolo do trabalho organizado, ordem e disciplina; seguidamente, depois, na idéia de que a natureza pode ser compreendida e dominada, sempre que a queiramos ouvir, como sugerem os conselhos de um certo professor Justino, figura exemplar. . . Ao mesmo tempo que as recordações da infância ganhavam expressão nessas alegorias e símbolos, também vos iríeis libertando de seu império total, como preparação para o segundo lance, o juvenil. Isso parece certo quando examinamos o último livro que, na série "Taquara-Póca" legitimamente cabe, e que se chama "Viagem ao Mundo Desconhecido". Ainda aí aparecem o cenário e as personagens daquele sítio da infância. Mas as personagens não são protagonistas, e, sim, suporte da narrativa - a da viagem de circunavegação de Fernão de Magalhães. O relato é feito por aquele sabido Justino, com ingênuos comentários dos meninos que o ouviam. Ele vos permitiu transitar da fase puramente lírica para a posição épica dos livros destinados a adolescentes. MOTIVAÇÃO DO CICLO JUVENIL Nesse novo lance, três volumes contêm as lendas bandeirantes do "Roteiro dos Martírios" - o caminho para as minas hipotéticas de uma serra em que os símbolos da crucificação de Cristo estariam talhados em pedra... Os dois Anhangüeras aí surgem como exemplos, de que os verdadeiros heróis da história buscam aproximar-se. Investigastes textos, documentos e mapas antigos. Por toda a história, porém, os ecos da motivação geral do escritor perduram, ainda que em outro e mais vasto plano tenha de projetar-se, e com efeito por - assim dizer paradoxal. Realmente, percebe-se que há manifesto desejo de extinguir a infância, de libertar-se o autor daquela primitiva inspiração de magia absorvente... Por várias formas esse desejo se revela, bastando apontar duas. A primeira está na insistência com que indicais a idade das personagens que procuravam as minas: "Tinha eu, então, doze anos", assim começa a primeira história. Algumas páginas adiante, declara-se que os quatorze anos haviam sido atingidos. E o rapazinho, herói da história, faz empenho em declarar que já possuía "a experiência de um homem adulto"... Contudo a infância não se desvanecia de todo. Permanece como painel de fundo. Assim, ora aí dizeis que as lembranças dela "grudavam na gente"; e, ora também que tudo era recordado "como se tivesse acontecido ontem"... E, então, em outro volume, esta confidência: "É uma felicidade a gente poder olhar para o passado". Ou, em comentário: "Com o passar dos anos as recordações da infância mais se avolumavam em sua lembrança...". E, voltando ao tom confidencial: "Com a resolução de voltar a minha terrinha, nascia dentro de mim um novo dia de esperança!...". A segunda forma de ruptura é o tipo do discurso. Em toda a série infantil o discurso é indireto: o autor narra, na terceira pessoa, sem maior interesse por aspectos introspectivos, mesmo porque entre o mundo real e o mundo imaginário das personagens não havia maior transição. Agora, não. No primeiro livro do "Roteiro dos Martírios", o texto começa com a primeira pessoa: "Lembro-me muito bem daquela noite...". O segundo, já de algum modo diferente, mas pessoal: "Naquele ano eu e meu fiel amigo Perova...”. E o terceiro: "O ar morno daquela tarde parecia sufocar a gente. Na boca da noite, entretanto, soprou fresco o noroeste, trazendo até nós um cheiro gostoso de terra, de folhas verdes e flores silvestres...”. Pode-se aí notar toda uma gradação. É ela característica do processo de integração social, exaltando-se, primeiro, o tom pessoal, e, depois, a incorporação aos grupos: "eu"; "eu e ele"; "a gente", quer dizer, "nós", e, com maior extensão, a nossa comunidade, a nossa raça... Toda a série juvenil, realmente, vem a representar aspectos de assimilação cultural. Através dos três livros referentes ao "Roteiro" todo o bandeirismo é evocado. Nos demais, descreveis a conquista do Acre e o drama de Canudos. Em todo o conjunto, o Brasil dos sertões e o Brasil do litoral... Uma vez dissestes, em entrevista a um jornal, que, entre vossos autores preferidos, estava Euclides da Cunha. . . Isso explica alguma coisa. E explica, é claro, que já não será bastante a magia, mas o sentido épico, quase fantasmagórico. . . A conjugação de elementos da realidade, magia e fantasmagoria, encontra explicação no pensamento de um dos nossos estudiosos do bandeirismo, Cassiano Ricardo. Diz ele que "o bandeirante dificilmente pode ser estudado a frio, em virtude da feição fabulosa de seus feitos. O tamanho da conquista assume uma dimensão extralógica, ou mágica..." "A própria linguagem dos documentos, não é outra", conclui por afirmar. Vossas novelas juvenis, Senhor Acadêmico, disso tiram matéria de arte, não por certo fácil de ser assim tratada, visto que o fantasmagórico freqüentemente beira o risível. . . Vosso bom gosto não permitiu misturar aí a ação histórica, mais comprovada, com a ficção que criastes. Por isso, se no ciclo anterior a técnica de narrar era sempre a mais singela, de ação contínua, passa agora a ser feita em narrativas paralelas. O intuito terá sido levar o adolescente a refletir nos dois planos em que os episódios se desenvolvem, tocando-se apenas no terreno confessado da ficção. . . O mundo infantil se esbate nessa experiência de uma nova técnica literária, se bem que a libertação total não seja completa. E, tanto parece ser assim que, num dos volumes da série - precisamente aquele que, a nosso ver, está mal classificado na anterior, a infantil - sentistes necessário apresentar uma advertência ao leitor: "Este livro (dizeis), conta uma história só. Mas conta uma história em duas narrativas paralelas. Numa delas, o professor Justino, de Taquara-Póca, expõe a seus alunos a conquista do Território do Acre, exaltando a figura de Plácido de Castro". E, logo a seguir, em itálico: "Na outra é que aparece o próprio herói, com as suas recordações de infância e de adolescência, as suas esperanças e os seus sonhos pelo Brasil..." Nessas últimas palavras torna-se claro o vosso desejo de ampliar a perspectiva, em passar dos interesses naturais das primeiras idades, para o plano mais largo e profundo da cultura nacional, como um todo, referido, porém, a porções definidas de espaço e tempo. A magia é intemporal. O Rei Café, os amáveis duendes, as próprias personagens do ciclo da infância não se prendiam a datas ou épocas. Nem seria necessário. A feição épica do ciclo juvenil impõe coisa diferente. Os fatos são narrados com precisão, e é esboçado um sentido de determinismo geral, impondo ao leitor o despertar do espírito crítico. . . O CICLO DO ROMANCE, FUNDO E FORMA Mas uma nova voz segreda ao ouvido do escritor, sentindo ele que a outra missão está chamando. Ao fim da última história dos Martírios, assim falais pela boca de uma das personagens: "No íntimo imaginava que nossa missão estava finda naqueles sertões...". Isto é - entendamos aqueles sertões dos bandeirantes, não os das paragens de Pratânia e arredores. Também um dos heróis daquela história, Pixuíra, jovem índio, devia por lá ficar, de vez. Em vossas próprias palavras: "... (ele) não nos podia acompanhar de volta ao nosso mundo. De fato, era melhor assim... Cada um de nós havia de seguir o seu rumo e cumprir a sua missão". A missão, de vossa parte, passava a ser agora o romance, a criação literária para gente grande, vosso ciclo atual. . . Claro que, em sentido genérico, se dominada pela emoção, toda literatura participa de romance, na acepção de construção poética, lírica ou épica. Na ordem de apreensão das coisas pelo escritor - e não é um crítico literário quem o diz, mas um pensador da envergadura de Whitehead "o primeiro estágio é o do romance". "A matéria tem aí a vividez da novidade; está plena de conexões inesperadas, de possibilidades apenas entrevistas, evocadas em globo, na riqueza total que a matéria apresente...”. "A emoção romântica é, na essência, a impressão que causa a transição dos fatos para a primeira compreensão da importância que tenham suas relações, não ainda analisadas...". Mas a boa crítica literária também sustenta essa mesma ampla maneira de ver. No seu admirável estudo, "Formação da Literatura Brasileira", Antônio Cândido, por exemplo, assim examina toda a evolução do nosso romantismo, como fato estético e expressão da vida social. Dessa compreensão tira os critérios para análise do "romance" brasileiro, como realização literária, quer na prosa, quer no verso. Na prosa, destaca o romance rural, de Bernardo Guimarães e Franklin Távora; o romance urbano, de Macedo, Manuel Antônio e José de Alencar; e o que vem a resultar, por fim, de maior conhecimento do homem numa sociedade local, com mais acurada pesquisa de valores espirituais, tal como se está em Machado de Assis... A mesma rubrica geral é adequada, porque o romance, como gênero, é onímodo, sumamente flexível. Tem a amplitude da epopéia, com a só diferença de destacar o homem comum, para vê-lo mais de perto, não só nos grandes lances, mas nos pequenos. Presta-se ao lírico, ao histórico, à descrição de costumes, ao estudo geral das relações humanas em sociedade - assim observa o crítico. . . Vossa intuição artística, Senhor Acadêmico, vos levaria a praticar o romance, não numa daquelas limitadas formas, mas em várias delas, simultâneas, em poderosa obra cíclica, planejada para três volumes. Dois deles são já conhecidos, "Clarão na Serra" e "Grotão do Café Amarelo". Não é difícil verificar que a motivação profunda de ambos é, na essência, uma combinação do estro que animou a produção nos escritos dos ciclos anteriores. Também deles extraístes os próprios temas, claro que engrandecidos e diversamente combinados, em plano mais alto: o conflito entre rural e urbano, a ocupação da terra, a projeção nesse movimento da mudança das instituições políticas e transformações econômicas, e, tudo isso em grupos e pessoas, seus dramas, incertezas e frustrações, aqui e ali rompidos com o lampejo de notas maiores, de valor épico... Grandes autores da mesma forma retomaram seus temas. Bem conhecido é o caso de Eça que, em "A Cidade e as Serras", não fez senão ampliar uma pequena história dantes publicada. Nossa crítica tem demonstrado também que "O Guarani", de Alencar, é como uma condensação de toda a obra anterior, com a retomada de seus mais caros temas. Assim fazeis também, e excelentemente, voltando aos temas, não às formas de expressão, pois a estrutura cíclica não o permitiria. Na obra de agora revive Pratânia e Santana, não aquelas que diretamente pudestes conhecer, com suas graças e mistérios, mas a das origens dos povoados, a de lutas de desbravadores, correrias de índios e trapaças de grileiros. . . Ao mesmo tempo, tudo isso enquadrais no cenário mais vasto da vida geral do país, salientado aquele mesmo contraste entre roça e cidade, a sinceridade por vezes simplória dos pioneiros e a esperteza dos homens letrados, cheia de crueldade tantas vezes. . . Em "Clarão na Serra", contais um pouco disso tudo menos acentuando a ação de personagens isoladas, a princípio, mas a de hordas e bandos, os quais refletem o que se pode chamar de "inconsciente coletivo"; e, mais, a ação da terra algo de telúrico, naqueles desvãos da serra e cursos dágua, na descida para as paragens do Paranapanema. Começais aí, por fatos de um século atrás, e caminhais, em lances bem articulados, até a proclamação da República. No "Grotão do Café Amarelo", a história parte de efeitos das lutas de Floriano, até o primeiro decênio deste século, sem maior precisão de datas. Então, naquela franja pioneira, movediça no espaço e realização da vida social, mais se recortam os elementos de uma nova geração, capacitados para agirem por si mesmos, na defesa de novas concepções de vida, respeitados valores básicos do pioneirismo. . . A obra não é propriamente histórica, ainda que a maior parte das figuras nela atuantes tenham realmente existido, como esclarece o cuidadoso cronista da região, Sebastião de Almeida Pinto. É mais de análise social, pois a visão social é que imprime real sentido às situações descritas. Isso não quer dizer que a narrativa não assuma aspectos líricos, em figuras que trabalham e lutam, amam e odeiam, riem e sofrem, vivem e morrem... Sente-se em tudo uma gradação, da lei da selva para as de moldes civilizados; de uma sociedade apenas esboçada para estágios de outro tipo, em que vêm a dominar sentimentos de lealdade e novas crenças, a um entendimento maior da vida em cooperação. Tais extremos admitem passos intermediários, menos distintos, senão recorrentes; e a força de romancista está, precisamente, em sugeri-los à intuição do leitor, na forma de atraentes alegorias e símbolos... Bem sabeis, Senhor Acadêmico, que dos romancistas de hoje três coisas se desejam: essa compreensão social ou capacidade de deslindar certos laços que prendam o homem às instituições; penetração psicológica, que a fundo aclare as razões da conduta pessoal, no desenho dos caracteres; e, enfim, para que tudo se relacione, capacidade estética verdadeira, sem o que o romance não poderá subsistir, à falta de real poder de comunicação com o leitor. Na conjugação desses três aspectos - o social, o psicológico e o estético - a argamassa natural é a linguagem, ou propriamente o estilo. A linguagem que empregais é a fala verdadeira das personagens e, assim, tanto quanto possível, referida aas modas de expressão de cada época a que a ação se reparta. Tudo quanto se possa chamar de estilo, em vossos romances, não é alguma coisa que tenhais juntada, por acréscimo, à história. Não. O estilo, em vossos escritos, é osso, carne e sangue, jamais o postiço, como demonstração de virtuosismo, é algo que exprime, de vossa parte, certa exigência de ordem espiritual, a mais proba. Os escritores tornam-se retóricos quando pretendem descrever emoções que jamais tenham sentido. Há, então, um arranjo artificial e desajeitado, como o daquela louça que só retiramos do armário quando tenhamos à mesa visitas muito importantes... Não é esse a vosso caso. O estilo é honesto em sua invenção, respira espontaneidade, não se pejando de mostrar, quando seja o caso, as rachaduras e desbeiçados da louça diária... Dá-nos sempre a impressão de verdade, oferecendo-nos o que o bom romance deve oferecer; isto é, dados reconstituídos com vida, integridade e feição natural, ainda quando um sopro de ternura os faça aquecer, ou os ímpetos de maiores impulsos as devam levar ao rubro... Os ritmos de vossos diálogos são os da conversação real, nem mais nem menos, avivados de graça e petulância, ou contidos por efeito de humildade e fadiga. . . Alguns críticos, talvez por isso, têm rotulado a vossa linguagem de "regional". Mas um crítico improvisado, desses discordando, num artigo em "O Estado de São Paulo", procurou demonstrar que não é bem assim. Vossa linguagem é paulista, no mais amplo sentido, como o é também brasileira, no que se encontre dela na expansão de nossa própria província lingüística sobre todo o espaço do país. Justificando essa afirmação, esse crítico de circunstância mostrou que três faixas de vocabulário e fraseologia se apresentam em vosso primeiro romance. Numa parte inicial, há manifesta riqueza de modos de falar do Sul, com marcada tonalidade da linguagem açoriana, a da origem gaúcha. Depois, numa segunda parte, influência do linguajar do negro, correspondente à marcha do café, com o trabalho servil de outros tempos. E, enfim, na parte final, correspondente às épocas mais recentes que descreveis, crescente participação da linguagem tecnológica, com nomes e verbos que o trabalho industrializado veio a exigir. . . No que respeita às formas sintáticas, possuís o gosto das imagens simples e diretas, sem desdenhar as outras mais complexas, quando isso pareça necessário. Serve de exemplo o capítulo inicial de "Clarão na Serra"... Pelo que, em vossos romances, também a linguagem realiza a história: neles, a criação literária e a instrumentação verbal participam de um só e mesmo ato de criação. . . CONCLUSÃO Deve-se afirmar, em conclusão, Senhor Acadêmico, que o ciclo atual de vossa produção é eminentemente paulista, paulista pelo tema, pela linguagem e sentido estético geral. À vossa glória de escritor teria, pois, de juntar-se a glória acadêmica. Isto é, a que independentemente de vós, e, também, de cada um de nós, sopra do movimento natural de cultura de nossa gente, reinterpretando as suas origens... Daquela gente de Pratânia e Santana, sem dúvida; mas, também, a de toda a que fazeis desfilar em vossos livros, lutando, crendo, amando e esperando: os índios caiuá, os negros dantes escravos, os imigrantes das mais diversas origens, os bandeirantes de ontem e de hoje. . . Senhor Francisco Marins: Animando-vos a prosseguir, vossos confrades vos saúdam, muito cordialmente. E, a propósito, nesta hora de júbilo comum, recordam um pensamento do fundador de vossa cadeira, nestes versos esculpido: “O sonho de beleza, esse estado de graça, não se fixa jamais: move-se com a vida. A obra surge e resplende. Ele prossegue e passa. E a obra viva e perfeita é a que não foi concluída...” Desse sonho de beleza, que não se fixa, que se move com a vida, dá-nos, na verdade, sugestivo exemplo toda a vossa obra - forte, vária, de linhas sempre ascendentes. Essas características levaram esta Companhia a proclamar o que agora reafirma, dizendo-vos: "Sois, sim, dos nossos, e esta é a vossa Casa, mansão, que é, das letras paulistas!". voltar |
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