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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO PÉRICLES E.S. RAMOS
Acadêmico: Lygia Fagundes Telles
"Estávamos em dívida para convosco, pois não era crível que uma escritora de vosso vulto ainda não tivesse tomado assento na mais alta das casas de cultura de São Paulo. Acedestes em fazer parte de nosso número. E a Academia Paulista de Letras vos recebe calorosamente."

Naqueles dias, éramos uns puros. Apenas uma coisa nos interessava: a conquista do renome literário, que sabíamos longínquo, fortuito, quase inacessível. Cintilassem a nossa frente todas as Pasárgadas, mesmo o trono do rei, pesado de luz e pedrarias, nós declinaríamos esse resplendor mundano, pois não era o que desejávamos. Queríamos uma província infinitamente menor, que talvez coubesse na palma da mão, mas cheia de asas e promessas: queríamos escrever. E naquelas manhãs da Faculdade de Direito, nos inícios do decênio de 40 - o mundo conflagrado e nós com os olhos e o coração alando-se para o futuro - conluiávamo-nos durante os intervalos de aula, vós, sra. Lygia Fagundes Telles, alguns colegas interessados nas coisas literárias e, no grupo, pars minima, eu próprio, então a poetar e a crer nos versos como se fossem eles a razão da existência; conluiávamo-nos para atingir a ambição comum que nos movia - a de, escrevendo, provar que existíamos. Eram muitas conversas, muitos sonhos, muitos debates - e cada um de nós galgando lentamente, a duras penas, os degraus liminares da carreira que pretendíamos. Lembro-me nitidamente de certo recreio, sob o olhar austero da estátua de José Bonifácio, o Moço, em que comunicastes ao grupo que já estáveis com um livro de contos quase terminado - mas em dificuldades para encontrar um nome para a coleção. Até um editor já tínheis, o prestigioso José de Barros Martins, mas não acháveis o título. Muitas sugestões foram feitas, sem aprovação vossa nem do grupo, até que alguém - não sei se Rômulo Fonseca, Ruy Affonso Machado ou eu próprio - sugeriu um pedaço de verso do "Romance do Rei Falecido", poema que eu havia publicado pouco antes num dos jornais de que não escasseava a nossa imprensa acadêmica. E assim surgiu Praia Viva a batizar vosso segundo livro, que o primeiro abolistes da relação de vossas obras. Cito esse vosso livro de estréia, Porão e Sobrado, pois embora digais hoje, já realizada e ilustre, que a pouca idade não justifica o mau livro, difícil seria que alguém, no extremo verdor dos anos, pudesse escrever coisa definitiva. Desses nossos passos juvenis estão cheios os periódicos acadêmicos nos quais colaborávamos, chegando vós a ratificar intra muros a auréola de adolescente prodígio que o vosso livro inaugural vos granjeara.

Entre os nossos projetos um foi, para nós, de envergadura. Resolvemos convidar Cecília Meireles a fazer uma conferência na Faculdade, e a poetisa de Viagem aceitou: passaria uma semana - ou quase - em São Paulo. Donos que éramos da estada da poetisa - ou poeta, que assim ela preferia dizer-se -, julgamos de nossa obrigação oferecer-lhe um programa completo para a sua permanência. Haveria a palestra, à noite, na sala João Mendes Júnior ou Barão de Ramalho, as maiores da casa, mas, e o resto? Não sabíamos o que fazer, e para cortarmos o embaraço adotamos a única providência cabível: delegamo-vos a incumbência de organizar a vosso talante todo o programa. E da incumbência saíste-vos, creio eu, de modo agradável para a poetisa e proveitoso para nós outros. Sem falar na conferência, a que assistiu, por exemplo, um Mário de Andrade, para nossa grande alegria e quase pasmo, por figura tão alta assim prestigiar a iniciativa de jovens, quando na verdade ele estava era prestigiando a poetisa, houve um concorrido chá na Galeria Paulista de Modas - antiga Casa Alemã, na rua Direita - e vários encontros com intelectuais. Um deles, lembro-me, na casa de Oswald de Andrade, onde alguns de nós tivemos a oportunidade de conhecer o escritor, famoso pelo talento e pela irreverência; outro em vossa própria casa, ao qual compareceu Monteiro Lobato, que já acreditava em vossas qualidades. A poetisa foi encantadora conosco, cumprindo integralmente o programa estabelecido, inclusive indo - coisa admirável! a um jantar de confraternização de pecuaristas, ou coisa parecida, no grill-room do Parque Antártica. Nenhum de nós, nem Cecília Meireles, tinha nada que ver com essa confraternização, mas nossa candura juvenil assim preencheu uma noite vazia, depois de muitas e muitas confabulações e arranjos. Mas tudo correu bem, porque o marido de Cecília, Heitor Grilo, era amigo do interventor Fernando Costa, que compareceu ao banquete - e assim o gelo foi quebrado. Desses acertos e canhestrices de estudantes saímos com um saldo vitorioso: a amizade que Cecília Meireles nos dedicou até à morte - e mesmo depois dela, segundo escreveu a um de nós. Ainda a vejo nitidamente nessa estada - olhos verde-cinza e turbante branco -, com sua cordura e tolerância a derramar-se fluviais sobre nossa bem intencionada inexperiência.

De Praia Viva que repercutiu criticamente fora dos muros da Faculdade, marcando verdadeiramente o início de uma caminhada que prometia ser vitoriosa e séria, partistes para outros livros de contos, até aportardes no romance. Vossa carreira se pontilhou de prêmios, de êxitos de crítica e de público - chegastes até a ver um de vossos romances, Ciranda de Pedra, ir para a televisão, em cuidado trabalho paralelo que constituiu novela de sucesso. Se ambicionáveis o renome literário, vós o conquistastes amplamente e, o que é mais importante, sem fazer concessões para isso. Vossa carreira, vós a seguistes com esforço continuado e progressivo, de modo que a maturidade confirmou as esperanças que nutríeis. Contista sempre fostes, com a estranha peculiaridade de escrever vossas histórias na cabeça, passando-as ao papel totalmente acabadas, até com as vírgulas e os pontos, como se passásseis algum manuscrito a máquina. Quando dizíeis "estou escrevendo um conto", já sabíamos que o estáveis elaborando mentalmente, e quando oferecíeis: "querem ouvir o conto que acabei?", já sabíamos que não iríeis puxar papel algum, mas simplesmente recitar o conto que depois iria para o papel. E esse hábito de assim compor os contos não se mudou através dos anos, como ainda há pouco nos confirmastes. A exceção constituem-na os romances, cuja dimensão já exige redação parcelada, fora de vosso sistema. Talvez por isso mesmo hajais dividido o mais lírico deles, lírico do lirismo que vem da infância e suas fontes, Ciranda de Pedra, em duas partes. Era uma nova técnica, de que vos assenhoreastes completamente em Verão no Aquário, com sua irredutível integridade. As Meninas, vosso terceiro romance, talvez seja o mais recheado de atualidade de todos eles, o mais vivo, e assim vossa trilogia tem o mérito de não repetir-se, mas de inovar de um para outro livro, com a conquista cabal do monólogo interior e com a manutenção sustentada do centro de interesse.

Já a história de vossos contos é uma história de clara ascensão, a ponto de podermos dizer, com firme confiança, que sois com Seminário dos Ratos um dos grandes contistas que o Brasil já produziu. Não que já antes não houvésseis escrito contos notáveis, como "A Caçada", que nos dá em poucas páginas a compacta visão de uma obra-prima: mas esse conto de singular grandeza como que se adensa e se torna sangue vivo nos constantes de Seminário dos Ratos. Estamos, já aqui, distantes dos contos para entreter simplesmente ou para fazer-se um nome: o contar, aqui, não reproduz a vida, mas adquire uma vida própria, quente, violenta, a pulsar como um coração. Não precisamos mais indagar se tal ou qual conto está ou não realizado: eles nos arrastam caudalosamente, todos eles, certos de sua própria existência de fábula inquestionada e transfeita em gente a fluir.

Não serei o primeiro a dizer, pois isso já é um lugar-comum da crítica, que vos caracteriza exuberante imaginação. Disse imaginação, notai-o, e não fantasia, pois se esta paira aérea e distante, a imaginação, observa-o Coleridge, coleta os materiais fragmentários da experiência e lhes dá unidade. Tendes em alto grau a faculdade de dramatizar, isto é, de projetar vossa personalidade, reencarnando-a em personagens que já não são o que sois, mas existem por direito próprio. Isso se patenteia nitidamente em vosso monólogo interior, que reproduz o pensamento de criaturas as mais diversas, homens ou mulheres, jovens ou idosos, humildes ou refinados. Saís para fora de vós mesma, e criais pessoas ágeis, com tal segurança que os paralelos com o mundo exterior já não interessam: deixamos, à porta de vossas páginas, toda a capacidade de descrer, e adentramos uma existência onde moço e moça podem tornar-se de súbito um passarinho de asas azuis e uma borboleta a esconder-se sob um banco de praça pública.

A realidade de vossa ficção está nela própria, em seu mundo particular, parecido com este que freqüentamos, mas capaz de suspender as leis naturais. Estamos no reino de uma outra realidade, criada pelo espírito: e com tal convicção que novos sóis giram pelos céus e novas criaturas surgem, sofrem e sonham em vossas páginas. Creio não exagerar se disser que, como Schopenhauer, acreditais no primado da dor. Vossos contos exprimem, no fundo, não a substância da vida, como queria Machado de Assis, mas a tristeza da vida, que o mestre igualmente não desdenhava. Mas com uma diferença: para Machado de Assis a vida era negra, para vós não é negra, é triste apenas, cheia da melancolia de uma ave de asas partidas. Não são as pessoas que são tristes, a vida é que o é, esta vida independente que é todavia um espelho poderoso desta nossa, capaz de tudo, exceto de modificá-la ou de torná-la feliz.

Assim vossa experiência cria personagens efetivas, sem que necessariamente elas vos reflitam. Já Wilson Martins assinalou que vossos contos indicam uma experiência que nem sempre é, biograficamente, a vossa; antes de mais nada - esclarece o crítico - sabeis ultrapassar "o círculo de giz autobiográfico em que giram desesperadamente tantos contistas modernos". Possuís, pois, "a primeira qualidade do ficcionista, a de saber colocar-se na pele dos outros. Essa é mais uma ambigüidade do conto" - remata Wilson Martins - "que assumis com a mesma autoridade de Machado de Assis e de Joaquim Paço d Arcos". Isso escreveu o crítico a propósito de um de vossos livros mais recuados no tempo, Histórias de Desencontro. Mas, se já encorpáveis criaturas verossímeis, com o tempo chegastes a encarná-las peremptórias: criaturas que circulam em seu mundo próprio, tão vivas como se estivessem circulando pelo nosso mundo de todos os dias. Sendo assim, anulam-se as fronteiras entre a realidade e a irrealidade, para vos moverdes tão livremente na narração de sucessos do dia-a-dia imaginado, como no urdimento de situações que refogem ao terra-a.-terra, para esbater-se no puramente psicológico, no suspense ou no fantástico. Em Seminário dos Ratos, depois de vários livros anteriores, entre os quais O Jardim Selvagem e Antes do Baile Verde, livros cheios de qualidades - basta dizer que neles figura "A Caçada" alcançastes, já o disse, aquele mundo definitivo em que a palavra se faz sangue, mundo ainda mais verdadeiro que o nosso, porque intemporal e como que sem fim, ao contrário de nossa pobre mortalidade.

Fora do conto e do romance, publicastes também uma espécie de diário ou de memórias e reflexões avulsas, sob o titulo de A Disciplina do Amor. Vários desses fragmentos poderiam figurar em vossos contos ou romances, como monólogo interior das personagens. Alguns parecem mesmo esboços de contos que não quisestes escrever, como este "O Jardineiro": "Só colhia as rosas ao anoitecer porque durante o sono elas não sentiam o aço frio da tesoura. Uma noite ele sonhou que cortava as hastes de manhã, em pleno sol, as rosas despertas e gritando na altura do corte das cabeças decepadas. Quando ele acordou, viu que estava com as mãos sujas de sangue".

Senhora Lygia Fagundes Telles

"Creremos? ou quem ama cria sonhos para si?" - indagava numa de suas bucólicas o grande poeta cujo bimilenário transcorreu em setembro último, Virgílio. Amais as letras e criais sonhos para vós, mas sonhos que generosamente repartis com os vossos semelhantes. Estávamos em dívida para convosco, pois não era crível que uma escritora de vosso vulto ainda não tivesse tomado assento na mais alta das casas de cultura de São Paulo. Acedestes em fazer parte de nosso número. E a Academia Paulista de Letras vos recebe calorosamente. Estamos em abril, no mês de uma segunda e porventura mais soberba primavera, conforme o divisou um de nossos altos antecessores, Vicente de Carvalho. Que este abril fique na nossa e na vossa história, como uma grande flor vermelha aberta aos vossos pés. Recolhei-a, e dai-nos, assim florida, a graça e a honra de vosso convívio



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