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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Luiz Carlos Lisboa
"Obrigado porque me recebeis, porque nos revelamos todos ligados nessa cadeia imensa de sincronicidade, mas obrigado principalmente pela honra do acompanhamento e pelo prazer da convivência", destaca o novo acadêmico.

Discurso de Posse em 26/08/1993

Senhor Presidente da Academia Paulista de Letras
Senhoras e Senhores Acadêmicos
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Ao longo do tempo e na crônica da história humana, no coração dos mitos e das utopias que o homem inventou, nos modelos e arquétipos da sua mente, existe uma paisagem encantadora onde não somente os olhos mas a alma inteira pode descansar, um abrigo acolhedor onde o espírito floresce e o artista fabrica o "ouro dos filósofos" - o lapis philosophorum. No passado, esse jardim do coração era o templo e a catedral que descerravam as portas a quem invocava o direito de santuário, era o ermo e a tebaida dos eremitas, onde se buscava a paz que renova, e talvez a graça quando se a merecesse.

Hoje mais que nunca, o viajante pela vida sabe que são raros e preciosos os remansos que ainda sobrevivem. Os duros dias de crise do nosso tempo não apenas tornaram perigosa a estrada, como arriscada a hospedagem. Por isso mesmo, realçaram nos remanescentes o idealismo e a generosidade. Na terra devastada em que vivemos, sob o reinado da quantidade e da pressa, um círculo que se devota a uma forma de beleza e não se isola do mundo em torres de marfim, é u a metáfora da "casa do homem" das velhas tradições. Se a forma eleita é a linguagem nesse Éden, com seus materiais e sua arquitetura, ela é o que um sábio moderno chamou "A Morada do Ser". É à porta de um desses oásis que estou chegando agora, não para fugir do mundo mas para aprender a ouvir melhor o mundo. Com os mesmos ideais e com o exemplo dos que aqui encontro, desejo medir melhor minhas limitações para melhor fazer o meu trabalho.

Mas antes de chamar à memória e registrar a presença intemporal dos que vieram primeiro, quero pesar aqui, com a promessa de ser breve para ser bem-vindo, as coincidências de afinidades e a vocação dos caminhos comuns dos antigos titulares da cadeira, que por decisão e vontade desta Casa, agora me cabe ocupar.

Se à intuição e à poesia foram atribuídas, no classicismo e em nosso tempo, as funções de rastreadoras da verdade, de lanternas levantadas na treva da ignorância, cada homem é um posto avançado e uma sentinela na luta contra a obscuridade. O acaso é matéria estranha na experiência de estar vivo, na surpresa sempre renovada de ser no mundo - e o melhor seria dizer que não existe. O mistério a decifrar, em vez disso, são as "coincidências significativas", aquilo que o brilho pioneiro de Carl Jung procurou entender sob o nome de sincronicidade. "Escolhi essa palavra" - anotou ele em suas memórias - "e a emprego no sentido especial de coincidência no tempo, de dois ou vários elementos, sem relação causal, que têm o mesmo conteúdo significativo, ou um sentido similar. Não há como explicar a sincronicidade" - conclui Jung - "Há somente como observá-la" .

É coincidência significativa bastante a existência de cinco vidas separadas mas ocupantes sucessivas de um mesmo lugar, às quais se soma agora uma sexta, bem mais modesta nos seus vôos, trilhando todas caminhos semelhantes em busca de expressão, e percorrendo passagens que foram e são, simultaneamente, trabalho e treinamento, ensino e aprendizado. Como apóstolos de um ideal que conhecem melhor à medida que buscam, a procura da objetividade e da economia verbal neles teve de se conciliar com a gratuidade que é a essência da beleza contida na literatura. Esses homens aperfeiçoaram um meio de expressão, e afiaram um instrumento com que exerceram e exercem sua arte da escritura. Coisa demais foi dita, no último meio século, sobre a formação do homem tipográfico e eletrônico, sobre os filtros da comunicação e a linguagem do que hoje se chama de mídia. Mas pouco ficou que nos abra os olhos de uma vez para o milagre da decantação do espírito pela disciplina ou pelo ritual, que vence a inércia e transcende a si mesmo para produzir sua opus majus.

Num livro admirável e esquecido, The Advancement of Learning, de um autor impossível de desconhecer, Francis Bacon, há uma ponderação a respeito das vantagens da técnica escolástica do aforismo, sobre o método ciceroniano da retórica na informação. No lugar da exposição metódica que se encontra no tratado ou na tese acadêmica, é proposta a sentença moral resumida, a mensagem quase "visual" da comunicação instantânea. Como Bacon, também abelardo prefere o discurso sem a persuasão pública do sermão, mas com a análise e a síntese envolvidas num engrama. Em Platão eram as impressões, em Descartes os traços, na moderna psicofisiologia - muito depois de Bacon mas muito perto dele - a certeza de que a cada sensação corresponde um traço cerebral durável, e qualquer ativação desse traço (ou qualquer reforço aforístico, como ele entendia) reproduz o conteúdo da sensação. É claro que o filósofo e lorde chanceler inglês nunca foi, no seu século XVII, um associacionista, ou um gestaltista, mas também nisso se antecipou a seu tempo. Nessa única obra filosófica que escreveu em inglês, ele quase profetiza, contemporâneo que foi de Nostradamus, a disciplina da linguagem jornalística, intensa e sintética, adotada por economia de espaço, não por sabedoria ou por amor ao ritual.

A essência da linguagem entre os gregos teria sido o próprio ser, se Heráclito tivesse pensado em lagos, que se traduz talvez como "o pousar que recolhe". Mas o que prevaleceu para "linguagem" foi glossa, a língua, a emissão sonora que denota alguma coisa. Por isso que a linguagem tornou-se a "expressão". Uma representação correta, na opinião de Heidegger, mas exterior, linguagem como expressão. A história da Humanidade talvez fosse outra, se Heráclito tivesse pensado em logos, "o pousar que recolhe". Mas se a linguagem é limitada e limitadora, como lembra Nietzsche, ela é autora da tragédia grega, e isso revela seu potencial. E às vezes, o "uso criativo da linguagem" emerge no caminho do aforismático para o literário, e com freqüência ocorre entre o jornalismo e a literatura.

É Merleau-Ponty quem diz do escritor, e nessa soma não exclui o jornalista: "É como o tecelão: trabalha às avessas. Trabalha só com a linguagem e, em sua trilha, vê-se de repente rodeado de sentido". E aqui há que voltar a Bacon, para lembrar como opera a transição da disciplina para a liberdade, com os benefícios da primeira e a largueza da segunda. A "via aforística" de registrar a realidade inibe, segundo ele, os excessos da vaidade, os ornamentos inúteis, os desvios caprichosos e desencaminhadores. O aforismo baconiano, metafórico como é, é a arte da síntese, é o discurso que só aproveita o essencial porque tem a missão de transmitir não uma realidade qualquer, mas aquela realidade datada, jungida no espaço-tempo. Esse falar aprendido na poética da imprensa, em nossos dias, elimina, como dizia Bacon sobre um certo falar semelhante, "as reflexões ilustrativas, a enumeração de exemplos e o discurso de encadeamento de causas" - onde nada disso é exigível, recomendável, sequer funcional, sendo antes nocivo à harmonia e à beleza da realidade com que lida.

Conta Lúcia Miguel Pereira que Machado de Assis, que muito cedo fez, por necessidade, os votos de pobreza, dedicação e obediência do trabalhador da imprensa de sua época, saiu do anonimato das revistas literárias, onde deixou suas primeiras colaborações, para a sistemática das redações de jornal, onde enfrentou "o grande público, obrigando-se a dar sua opinião sobre o dia, refletindo e pensando, num espaço certo e com a linguagem contida", como no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro com Quintino Bocaiúva, amigo e disciplinador. Mas foi numa revista, O Espelho, que mais tarde Machado escreveu: "O jornal, literatura cotidiana no dito de um publicitário contemporâneo, é reprodução diária do espírito do povo, e espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete não a idéia de um homem mas a idéia popular, esta fração da idéia humana (...) Já disse eu (prossegue Machado) que a humanidade, em busca de uma forma mais conforme os seus instintos, descobriu o jornal". (pausa) Esse foi um aprendizado de método e de humildade, que nele e em tantos outros, em campo favorável, transformou, pelo trabalho, a matéria rústica na Pedra Filosofal.

Na noite de 27 de setembro de 1978, nesta Casa, Honório de Sylos encerrou seu discurso de posse falando nos mistérios da sincronicidade, que Jung não desvendou nem o brasileiro designou por esse nome. "A Academia Paulista de Letras acolhe hoje um jornalista, como o patrono e os titulares que me precederam" - terminou Sylos. Quero começar por esse antecessor ilustre, o mais próximo no tempo, a lembrança que o costume e a edificação pelo exemplo me convidam a fazer, entre os que honraram a cadeira seis desta Academia.

Sylos começou sua carreira jornalística na Revista do Brasil. Pouco depois, aos 22 anos, passou a trabalhar no Correio Paulistano, com Amadeu Amaral, onde subiu todos os degraus e exerceu todas as funções. Como repórter, redator, subsecretário, secretário-geral e subdiretor, comprimiu notícias, reduziu palavras, escoimou expressões, para aprender como é possível ser profundo, se necessário, sendo simples para ser eficaz. Foi repórter, redator e secretário da Folha da Manhã, e redator de A Gazeta. O novo jornalismo do Lead e da "pirâmide invertida" ainda estava longe de surgir nas redações dos jornais norte-americanos, naquela década dos 30. Em 29 ocupou a Casa Civil do presidente do estado de São Paulo Júlio Prestes. Naquele tempo, deu de si mesmo uma definição: "Sou só repórter e cronista, graças a Deus". E acrescentou: "Aspiro ser jornalista, o que é difícil". E mais: "Ser literato é carregar pesado ônus sobre os ombros". Menotti Del Picchia comentou uma vez: "O jornalista é obrigado a ter talento todo dia. O literato não, escreve quando lhe apetece". Honório de Sylos trabalhou desde cedo e por muito tempo no forno alquímico das redações. Em 1933 publicou Itararé, Itararé, com a sua paixão pela história. Tornava-se escritor, ensaísta, administrador. Como João do Rio e Brito Broca, com Machado de Assis e Euclides da Cunha, na veia aforística, ou como escrevia Bacon: "Trabalhando no cerne e no coração da realidade que se deseja mostrar" .

Quando em 1946 assumiu o Departamento Estadual de Informações, Honório de Sylos promoveu a aproximação do órgão com a imprensa, e no seu discurso de posse, deu um depoimento: "Como homem de jornal, não aceitaria nunca tamanha responsabilidade se não tivesse a certeza de que estão prescritos no Brasil, e oxalá para sempre, os últimos resquícios de restrição à liberdade de imprensa". Quando estimulou os estudos de bandeirismo, era o colecionador de momentos da História de sua terra querida e da de seu país, que prevalecia. No apoio incansável às homenagens a Euclides da Cunha é então o homem de letras formado na beleza da concisão haicaista que renuncia ao que não é fundamental. O "repórter de Canudos" já revelara por inteiro a transição do jornalista para o escritor consumado, das famosas cadernetas de campo para a imensa odisséia sertaneja.

N o discurso de posse na Academia, naquela noite em que lembrou, com outras palavras, as "coincidências significativas", Sylos evoca os intelectuais e expoentes que se fizeram na forja das redações: Júlio Prestes, Washington Luís, Rodrigues de Abreu, Brito Broca, todos doublé de jornalista e escritor. O que distingue, num artigo de imprensa, a marca da literatura? Entre outros fatores, sua resistência ao tempo, Honório de Sylos está inteiro e atual na sua última coletânea, Gente e Fatos - relembranças jornalísticas. Assim como em São Paulo e seus Caminhos e nos discursos pronunciados na Academia, que confirmam a promessa do primeiro deles, de posse, nas suas últimas palavras: "Tudo farei para acompanhar os passos dos que aqui chegaram antes".

Quem o antecedeu foi Eurico Branco Ribeiro. Aos 12 anos ele já escrevia um jornal, provavelmente sozinho, na sua Guarapuava de origem, no Paraná. Pouco depois colaborou numa publicação da cidade, mas após cinco anos já estava no Estado de S. Paulo, de onde saiu para participar do primeiro grupo de redatores das Folhas. Conciliava a Faculdade de Medicina com o trabalho na edição vespertina do Estadinho, e uma vez formado tornou-se redator dos Anais Paulistas de Medicina, onde esteve por 45 anos, tendo reunido essa longa colaboração em livro, sob o título Estudos Cirúrgicos, em seis volumes. Escreveu obra variada sobre uma de suas afeições, a vida rotária, mas foi Médico, Pintor e Santo. A vida romanceada do evangelista São Lucas, seu grande sucesso. Eurico Branco Ribeiro produziu 35 livros, dos quais 14 sobre assuntos médicos, 11 sobre temas rotários e os demais sobre História e Literatura, inclusive Gralha Azul, À Sombra dos Pinheirais e Viagem às Sete Quedas.

Antes dele, ocupou a cadeira seis da Academia Paulista de Letras Plínio Salgado. Nenhum de seus antecessores ou sucessores nesse posto foi tão assíduo quanto ele, nem tão precoce, no exercício do jornalismo. Na sua São Bento do Sapucaí foi mestre-escola e agrimensor, antes de fundar, em 1916, com Joaquim Rennó Pereira, seu futuro cunhado, o semanário Correio de São Bento. Foi também diretor de um grupo teatral, de um clube de futebol, e supervisor do "tiro de guerra". Seu primeiro emprego em São Paulo foi o de suplente do Correio Paulistano, órgão do Partido Republicano Paulista. Pouco depois era redator do jornal, a convite de Menotti Del Picchia. O primeiro livro, O Estrangeiro, esgotou-se em três semanas e foi considerado por Agripino Grieco o melhor romance do ano. Os artigos de Plínio sobre o Movimento Verde-Amarelo - que contava com Cassiano Ricardo, Cândido Motta Filho e Menotti - saiam no Correio, e no Rio de Janeiro apareciam na Revista Novíssima.

Foi em 1927 que Salgado apresentou sua primeira interpretação política da sociedade brasileira, uma coletânea de artigos no Correio. Na verdade, seguia os passos de Oliveira Viana e de Alberto Torres. Denunciava o artificialismo do regime republicano da época e alguns mecanismos do sistema democrático. "As oposições brasileiras" - dizia nos artigos "inserem em seus programas questões puramente formais". Anatematizava a vida urbana, a centralização individualista e a fascinação das cidades.

Sobre o conflito que se anunciava na Europa, escrevia Plínio Salgado: "Ambos profundamente materialistas, o fascismo e o comunismo decretam a falência da democracia - ou triunfa o imperialismo econômico baseado no nacionalismo, no fascismo, na ditadura militar, ou vence o imperialismo político da III Internacional".

Em fevereiro de 31, na carta que enviou a Augusto Frederico Schmidt, quando comunica a intenção de fundar um jornal, revelou suas novas idéias. Havia escolhido um caminho: com o diário A Razão e a Sociedade de Estudos Políticos, estava nascendo o Integralismo. Defendia um Estado centralizado, um Judiciário autônomo e unificado e um Legislativo de técnicos, não de políticos. Seu manifesto teve imensa repercussão e inaugurou a carreira política de Plínio Salgado. O movimento começou inspirado no espiritualismo vago do fascismo italiano dos primeiros tempos, e se identificou com o salazarismo português, com o falangismo espanhol e com o rexismo belga.

A preocupação nacionalista que o acompanhava era mais cultural do que econômica, e o "estado liberal" era seu adversário mais visível, depois do comunismo internacional. O fascismo de Plínio Salgado foi o da primeira fase, um corporativismo, não o da fase imperialista para onde o conduziu Mussolini. O escritor desenvolveu seu pensamento em diversos livros doutrinários. O fracasso do levante integralista levou Plínio Salgado ao exílio em 39. Quando da declaração de guerra do Brasil à Alemanha e à Itália, em agosto de 42, enviou telegrama de apoio e solidariedade a Vargas e ao General Dutra, Ministro da Guerra. De volta ao Brasil em 45, fundou um partido político com antigos dirigentes integralistas, e outros que a eles se juntaram.

Plínio Salgado escreveu e viu editar mais de 70 obras, A Vida de Jesus (de 1942) é um clássico da literatura brasileira. A maturação estilística do autor, seu aprendizado, podem ser observados em Discurso às Estrelas, crônicas publicadas em 27, e no romance O Esperado, de quatro anos depois. A relação dos seus postos na imprensa é longa demais para ser referida aqui. O escritor que se fez no dia-a-dia do jornal mostra seu crescimento a quem compulsa as coleções de diários em que trabalhou. Impondo-se um tema, uma medida de tamanho, um tratamento e uma simplicidade que o tornassem acessível a diferentes estratos de leitor, fabricou nele mesmo o escritor, modelou nele próprio o artista.

Antecedeu a Plínio Salgado, João Vampré, fundador. Nascido em Sergipe, dedicou-se à História e à Etnografia, em sua paixão pelos costumes do Brasil dos primeiros tempos. Aos 18 anos veio para São Paulo - primeiro Limeira, depois a capital. Sua primeira colaboração em jornal foi no Diário Popular, onde trabalhou sua forma e um dia chamou atenção, ao contestar um trabalho filológico do Padre Senna Freitas. Foi então para Ouro Preto, capital da província mineira, estudar Farmácia, e lá passou a escrever no Minas Gerais.

Ao tempo da revolta de setembro de 1893, alistou-se no "Batalhão Patriótico", e logo que terminaram os combates retornou a São Paulo para se dedicar ao magistério e à imprensa. No Correio Paulistano, no Commércio de São Paulo e no O Estado de S. Paulo, além de em revistas literárias, fez seu aprendizado e conheceu a sedução de lidar com as palavras. Crítica, controvérsia literária, poesia e folclore, eram seus temas. Escreveu O Natal em Sergipe, sobre costumes de sua terra. Publicou em livro, mais tarde, toda a crítica que produziu para o Estado. Os depoimentos sobre João Vampré são no mínimo curiosos: era tímido, quase infantil no seu acanhamento. Quando se aborrecia do mundo, sentava-se para escrever, e ele se aborrecia muito frequentemente do mundo. Vive da imprensa, mas não gosta do que escreve. Aos colegas de redação, repete sempre Boileau: "Vingt fois sur le métier, remetter votre ouvrage".

Mas o homem de imprensa tornou-se polígrafo, na escola da contenção e da objetividade. E comenta uma frase que anda nas rodas e nos jornais, no final do século XIX: "Quanto fino artista da palavra se tem transviado por aí, nas lides da imprensa jornalística". João Vampré sabe que com ele foi o contrário o que aconteceu. Sobre sua natureza, alguém escreveu: "Como soldado, combatendo a revolta ao lado de Floriano Peixoto, é decidido e calmo. Como escritor e indeciso, temeroso do resultado. Mas escreve bem, e cada dia melhor". Seu Aspectos Brasileiros, de ensaios etnográficos, tradições, festejos, orografia, estudos sobre o Vaza-Barris de sua terra e a antiga cidade de Laranjeiras, mostra a qualidade do seu talento e o fruto de seu aprendizado.

O patrono da cadeira seis é um mineiro de Diamantina, José Vieira Couto de Magalhães, que estudou no colégio do Caraça e formou-se em Direito em São Paulo. Talvez descendente do navegador Fernão de Magalhães, sua mãe era de origem paulista. Aos 20 anos escreveu um conto, Os Guaianás, que mais tarde iria refundir um romance. Não se contenta em ser bacharel, e estuda a fundo a arte militar, e botânica, mineralogia, zoologia, geologia. Fala francês, alemão, inglês, é admirado por seu cavalheirismo e sua cultura. Joaquim Nabuco e Afonso Arinos referem-se a ele de forma elogiosa. Seu livro O Selvagem foi escrito com amor. Composto por ordem de D. Pedro II para figurar na Exposição de Filadélfia de 1876, exigiu do autor pesquisa exaustiva. Mas o brigadeiro Couto de Magalhães, tão apreciado nos salões, tem uma alma de campeador e o espírito de um cientista do século XIX, e não se separa da sua caderneta de notas. Aos 12 anos que viveu no Araguaia, foi um bandeirante. Aos 24 anos era presidente da Província de Goiás e já tinha pronto seu primeiro livro, a que deu o subtítulo "Trabalho para o aproveitamento do selvagem e do solo por ele ocupado no Brasil". O Duque de Caxias ofereceu-lhe ajuda do Exército, e declarou sua admiração pelos conhecimentos e pelo trabalho de Couto de Magalhães.

Também o patrono da cadeira seis escreveu para os jornais. Eram as "cartas descritivas" que mandou de Londres, onde morou quatro anos, e as que enviou de Argel, onde adoeceu e se recuperou, para o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro. Na correspondência para esse matutino contou suas aventuras e descobertas no Araguaia, onde lutou também contra o impaludismo. Seu primeiro conto, Os Guaianás, saiu no Correio Paulistano, em 1871, depois de já publicado em folhetim, no Commércio de São Paulo, em 1860, Viagem ao Araguaia é chamado pelo autor "memórias", e seu estilo é jornalístico, às vezes relatorial, com horários e referências geográficas. No final, é uma grande reportagem, Couto de Magalhães participa da guerra do Paraguai, da retomada de Corumbá, e escreve sobre isso. Atravessa os sertões, transporta navios por terra para rios vizinhos, faz estudos sobre os índios, gramática tupi, anota observações astronômicas. É um repórter de campo, como foi Euclides, como foram outros jornalistas - e ao mesmo tempo é um personagem de Júlio Verne.

Couto de Magalhães, patrono da cadeira seis, libertou-se (e libertou-nos também) da interpretação européia da alma nacional. Na linguagem aforística dos comunicadores, aprendeu e ensinou. Conheceu e difundiu o grande sentido das migrações tupis, a teogonia dos índios, a tradição dos pajés. Descobriu que o anhangá, o caapora, o saci pererê não são maléficos mas protetores. Anhangá protege a caça, é um semideus da ecologia. Uauiará é protetora dos peixes, e só por isso eventualmente perigosa para os homens. Não era politeísta a cultura indígena: seu fetichismo está próximo do monoteísmo. Ao contrário do que supunha o santo e magnífico padre Manoel da Nóbrega. Couto de Magalhães examinou as fábulas e as lendas, olhou fundo no ciclo das Bandeiras, pela primeira vez. Por isso é um dos precursores da nacionalidade consciente - e seu instrumento foi uma linguagem que depurou com o uso, afiou com a autocrítica, apropriou ao veículo e ao que se chamaria, muito depois, seu "público alvo".

Isso exigiu dele, e de todos os que se lhe seguiram no mundo, no Brasil, nesta Casa, na cadeira seis desta Academia Paulista de Letras, humildade e amor, aprendizagem constante, devoção ao trabalho, vontade de conhecer que durou a vida inteira e que só se extinguiu com a morte.

Obrigado porque me recebeis, porque nos revelamos todos ligados nessa cadeia imensa de sincronicidade, mas obrigado principalmente pela honra do acompanhamento e pelo prazer da convivência.



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