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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Raul Cutait
"Ao adentrar nesta Casa, cabe-me não me sentir envaidecido, mas sim me perguntar como posso contribuir para seu engrandecimento, não só em respeito a ela e aos membros presentes e que nos sucederam, mas principalmente à sua causa, à causa das letras, das letras como força motriz do crescimento intelectual e espiritual do homem."

dos novos conhecimentos genéticos, mostra que a natureza, certamente por orientação divina, contemplou de forma diferenciada a espécie do Homo sapiens, dando-lhe, com exclusividade, um misterioso conjunto de aptidões:

o poder de pensar, o privilégio de sonhar e a capacidade de executar.

Em poucos milênios, que nada são se comparados aos 37 bilhões de anos desde a decantada explosão do Big Bang, o homem impôs-se no planeta Terra, desenvolvendo arte, ciência, religião, tecnologia. Ao longo desse tempo, evoluiu como espécie, com acertos e erros, numa dinâmica evolutiva e de comportamento social nem sempre previsíveis ou mesmo compreensíveis, ditada por competências e incompetências intelectuais e emocionais.

Dentre as várias características da espécie humana, ressalta-se sua necessidade de registrar, de alguma forma, atividades e pensamentos. E foi assim que nasceu a escrita, inicialmente pictográfica, como nos mostram as pinturas rupestres na gruta de Rodésia, na África, nas cavernas de Lascaux na França ou na Serra da Capivara no Piauí, dentre outras. Essa maneira mais primitiva de manifestação impressa deu lugar à escrita cuneiforme dos sumérios, à demótica e hieroglífica dos egípcios, aos ideogramas dos chineses, todas elas antecedendo aquilo que foi um dos maiores saltos da humanidade: a criação do alfabeto. Desenvolvido pelos fenícios, provavelmente no século XIII a.C., e já baseado em fonemas, ganhou sua versão grega e, posteriormente, latina, que é a que nos instrumenta nos dias atuais. Pelos milênios afora, acumularam-se registros em rochas, placas de barro, pedras e papiros, até que veio o papel, mais prático e mais barato, permitindo uma maior difusão do grande legado das várias gerações: o conhecimento. E, sem dúvida, foi Gutenberg, com a criação de sua impressora no século XV, que, ao possibilitar a reprodução de textos, impulsionou, de forma impactante, a democratização do conhecimento. Hoje, vivemos a era digital, onde ao rádio e televisão agrega-se a já indispensável internet, revolucionário meio de comunicação que em 2010 já é utilizado por dois bilhões de pessoas, ou seja, quase 30% da humanidade.

Contudo, que não se vaticine que esta eliminará o livro, que traz o prazer de manipulá-lo e cheirá-lo, como bem salientam Umberto Eco e Jean Claude Carriére em deliciosos diálogos recentemente publicados. Na verdade, segundo Miguel Reale, o que distingue o livro impresso é sua unidade sistemática. De minha parte, mesmo não vendo antagonismo entre papel e web, confesso meu apreço por segurar um livro e, em especial, por rabiscá-lo, nele deixando pensamentos e reflexões, acreditando que dessa forma preparo o roteiro da releitura.

Letras gerando palavras, palavras gerando textos, textos gerando conhecimento e comportamento. Cada vez se escreve mais, dos eternos e indispensáveis tratados sobre os mais variados temas até as curtas mensagens transmitidas por meios eletrônicos e que são replicadas em escala exponencial. O fato é que cada vez se lê mais, não só no papel, mas também nas telas de celulares, computadores ou televisões.

E, com freqüência cada vez maior, imagens fundem-se à escrita, na busca incessante de se facilitar a compreensão do que se pretende transmitir.

A verdade é que tudo mudou. Não só se quebrou o antigo paradigma de que o conhecimento era disponibilizado apenas para grupos restritos, no passado longínquo ligados essencialmente ao poder temporal e religioso, como também se perdeu o controle sobre a disseminação de praticamente qualquer informação. Ou seja, a queima das bibliotecas praticada pelos antigos conquistadores, sendo a de Alexandria a mais lamentada, no afã de esmagar a história e a cultura dos povos subjugados, seria atualmente não só impensável e impraticável, mas também completamente ineficaz. Felizmente, tudo mudou. Os diversos meios de comunicação garantem, de alguma forma, o democrático acesso às informações, enquanto que a alfabetização, cada vez mais acessível para os menos afortunados, amplia a inclusão intelectual e social.

Embora entusiasmante pela sua abrangência, essa nova ordem de comunicação cria uma intangível dificuldade, que tende a ser não mais o acessar, mas sim o que acessar e o que reter. Em outras palavras, como melhor utilizar o tempo finito que a vida nos presenteia com as informações necessárias para nosso dia-a-dia, de uma maneira produtiva e não dispersa?

Onde encontrar a tênue linha entre o crível e o não crível, entre o definitivo e a efeméride, entre o prazer intelectual e a simples ferramenta de trabalho?

Esse questionamento vale para literatura, arte, ciência e mesmo música, áreas de conhecimento em constante ebulição e evolução. Portanto, fica claro que o homem precisa exercer sua inteligência, dedicação, determinação, sensibilidade e poder de decisão em prol de seu próprio tempo, em busca do almejado e necessário equilíbrio e paz interiores. Aliás, como médico e professor, vivo pessoal e profissionalmente esse dilema a cada dia, onde a cumplicidade com meus pacientes na busca de seus processos de cura leva-me a usar considerável parte de meu tempo na busca das melhores informações científicas, dispersas em milhões de artigos publicados anualmente em centenas de revistas médicas.

Sou feliz por poder enxergar, eu que tive um avô que, na minha idade, já era cego. Com os olhos vejo meu mundo, interajo com a natureza, alimento minha alma. Com eles, auxiliado pelos outros sentidos, conduzo minha inquietude na busca incessante do significado da vida. Com eles leio e, atrevido, escrevo, satisfazendo prazeres interiores que não raro são mais importantes que os próprios textos. Embora na minha infância tenha ensaiado escrever alguns contos e poesias, ative-me, durante minha vida, a publicar quase que exclusivamente trabalhos científicos e textos reflexivos sobre saúde, pautado por minha vida profissional, universitária e acadêmica, bem como por meus anseios de justiça social, tentando agregar conhecimentos que pudessem ajudar médicos nas suas atividades e pensadores, legisladores e pessoas em geral a melhor entender os nossos problemas de saúde. E, creiam-me, procurei escrever com espírito lúdico, procurando as palavras e me deliciando com as construções de frases e textos, na busca incessante da clareza. Agora, já tendo percorrido um razoável trecho da estrada de minha vida, regozijo-me pelo privilégio de ter conseguido escrever, simplesmente escrever, com minhas naturais limitações, mas sempre admirando aqueles que usaram da palavra escrita para agregar conhecimento, luz e amor.

Não fazia parte de meus projetos de vida tornar-me membro da prestigiosa Academia Paulista de Letras, na qual foi aceito de maneira bastante expressiva e carinhosa por meus novos pares. Ao ser estimulado a nela adentrar, fui então atrás de sua história e seus personagens. Qual não foi minha surpresa ao constatar que seu fundador, Joaquim José de Carvalho, era médico. Escritor, com vasta cultura, era clínico geral, tendo se envolvido com a medicina forense quando essa era ainda uma especialidade embrionária.

Ao longo de 101 anos, outros 22 ilustres colegas de profissão por aqui passaram, e permito-me mencionar, dentre eles, os ilustres acadêmicos que me antecederam nesta Casa e também na Casa de Arnaldo, a minha Faculdade de Medicina da USP: Ulisses Paranhos, Rubião Alves Meira, Franco da Rocha, Luciano Gualberto, Raul Briquet, Ernesto de Souza Campos, Edmundo Vasconcelos e Antonio Carlos Pacheco e Silva.

A cadeira 30, a qual tenho agora o privilégio de agora ocupar, tem como patrono o Pe. Diogo Antonio Feijó. Intrigante religioso, era grande crítico do clero brasileiro, o qual considerava pouco preparado e de moral contestável. Feijó se colocava contrário ao celibato clerical e à submissão da Igreja brasileira a Roma. Político extremamente ativo, foi deputado, senador, ministro da Justiça e, finalmente, regente na época do Império.

O fundador e, portanto, primeiro ocupante desta cadeira foi Eugênio de Andrada Egas. Nascido em 1863, bacharel em direito e republicano fervoroso, era historiador e biógrafo, tendo publicado, dentre outras obras, reverenciada monografia sobre a independência do Brasil. Exerceu cargos políticos e, como jornalista, atuou nos jornais O Estado de São Paulo e Correio Paulistano. Foi sucedido por Roberto dos Santos Moreira, sem haver falecido, o que era então permitido pelos estatutos da Academia. Também bacharel em direito, desde os bancos acadêmicos Moreira já se envolvia com a edição de periódicos, sendo reconhecido orador e escritor de artigos e poesias. Dedicou-se à política, tendo sido deputado estadual, federal e constituinte, além de se envolver com a Revolução Constitucionalista de 32, a qual abandonou por desgosto após o golpe de 37.

Um dos fundadores da Sociedade de Cultura Artística, foi também colaborador do O Estado de São Paulo. O terceiro ocupante da cadeira 30 foi Alceu Maynard de Araújo, também egresso da gloriosa Faculdade de Direito da USP. Poeta, conhecedor do tupi-guarani, tinha seu foco literário voltado ao nosso folclore, sobre o qual escreveu extensa e densa obra em três volumes. Antonio Soares Amora foi quem o sucedeu, tendo publicado diversos livros sobre literatura portuguesa e brasileira. Dono de consistente cultura, atuou durante alguns anos na Fundação Anchieta. Finalmente, veio José Mindlin, bibliófilo reverenciado pela exuberante biblioteca montada ao longo de décadas, e estimado por sua cativante simpatia e fidalguia nas relações pessoais. Convivi com Mindlin menos do que gostaria, em alguns conselhos de responsabilidade social, onde em várias situações cabia-lhe o comentário final, o comentário do mais sábio, feito sempre de forma suave.

Aliás, seu estilo afável impedia-me de chamá-lo de senhor, apesar da diferença de idade, e me fazia sentir à vontade para um cúmplice você. Bem sucedido empresário, secretário de Cultura de Paulo Egídio Martins, tinha um real envolvimento com causas sociais. Contudo, sua paixão na vida foram os livros, aos quais dedicou grande parte de sua vida, com a cumplicidade absoluta de Guita, construindo a maior biblioteca particular de nosso país, com mais de 40 mil volumes. Em suas próprias palavras, Mindlin tinha uma loucura mansa pelos livros. Como literato, escreveu quatro livros, dos quais saliento sua autobiografia "Uma vida entre livros".

Ao ser designado como seu sucessor para ocupar a cadeira 30, pelo tempo que o Todo Poderoso determinar, desejo agradecer o estímulo recebido de meus novos pares para pleiteá-la, em particular de nosso presidente José Renato Nalini e do acadêmico Gabriel Chalita. Chego à Academia Paulista de Letras antecipando muitos momentos de convívio afetuoso e enriquecedor. Sinto-me extremamente honrado em, a partir de agora, fazer parte deste seleto grupo, que reverencio citando a grande dama da literatura brasileira, Lygia Fagundes Telles. E, ao adentrar nesta Casa, cabe-me não me sentir envaidecido, mas sim me perguntar como posso contribuir para seu engrandecimento, não só em respeito a ela e aos membros presentes e que nos sucederam, mas principalmente à sua causa, à causa das letras, das letras como força motriz do crescimento intelectual e espiritual do homem.

Finalizo estas palavras agradecendo às pessoas que, como a areia, em um processo contínuo, encheram e enchem a ampulheta de minha vida, dando-me rumo e estímulo: professores, desde os dos bancos escolares, mestres que me ensinaram através de seus textos, exemplos, idéias e atitudes; amigos, desde os da infância; pacientes, desde quando estudante de medicina; e família, desde o sempre - Yvonne e Daher, meus pais; Márcia, esposa amada, Bianca, Raul e Fernando, meus filhos; Edgard, Luiz e Plínio, meus irmãos. Agradeço a todos que hoje me honram com sua presença, numa inequívoca demonstração de estima. Finalmente, mais uma vez agradeço a meus novos pares pela carinhosa acolhida. Sinto-me abençoado.



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