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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO GABRIEL CHALITA
Acadêmico: Raul Cutait
"A vida se reveste de significado quando amamos as pessoas. É o que nos identifica e nos plenifica.A Medicina e a Literatura são artes de amor e de conhecimento", destaca o acadêmico Gabriel Chalita ao receber o novo confrade, o médico Raul Cutait.

Excelentíssimo Desembargador Dr. José Renato Nalini

Presidente da Academia Paulista de Letras

Excelentíssimas autoridades

Confreiras e confrades

Amigas e amigos



Sejam bem-vindos à noite em que a Literatura e a Medicina convidam para alguma prosa e um pouco de poesia. Noite em que convivemos, celebramos a saudade e o presente que nos reinventa.

Convidemos Guimarães Rosa, médico e escritor, para a nossa introdução. Dizia o mestre dos neologismos: Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes da minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte.

Na Medicina, Guimarães permaneceu pouco. Duas coisas o impressionavam sobremaneira: o parto e a incapacidade de curar os leprosos. Quando decidiu trocar a Medicina pela Literatura, proclamou: Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de por o pé no caminho penoso, que já conheço. Continuou, no novo ofício, seu intento amoroso de curar. As palavras também têm esse poder.

O médico é cioso do valor da generosidade. Jura, desde Hipócrates, cumprir o digno mister de cuidar do doente, conservando imaculadas a vida e a arte. Jura a ética e o respeito. Jura o trabalho árduo em benefício de quem padece.

Os médicos têm um padroeiro. São Lucas. Em seu Evangelho, o apóstolo narra a linda história do leproso agradecido. Os leprosos estavam obrigados pela Antiga Lei a se conservarem a uma determinada distância de qualquer pessoa para evitar o contágio. Além disso, os leprosos causavam medo e nojo e eram, por isso, segregados.

Jesus vai além. Não há nenhum sentimento menor em sua decisão de Amar. No capítulo 17, Lucas fala de dez leprosos que se aproximaram de Jesus, pedindo compaixão. Jesus ordenou que caminhassem e se apresentassem ao sacerdote. Enquanto caminhavam, ficavam curados. Apenas um voltou para agradecer. Um samaritano. Justamente um estrangeiro. O que era mais desprezado.

Em outra passagem de sua vida, Jesus, ao explicar o Amor ao próximo, conta uma parábola em que também havia um samaritano. O bom samaritano era aquele que não se limitou a sentir pena, mas que se aproximou do ferido e dele cuidou. Os outros dois tinham pressa e não tinham disposição em sujar as mãos. Iam para o Templo. O estrangeiro, discriminado, deixou tudo para cuidar de quem mais precisava.

A gratidão é um dos mais nobres sentimentos da alma. Somos gratos por esta noite. A Academia tem novamente um médico. Raul Cutait chega com uma riquíssima biografia. Cirurgião e gastroenterologista. Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo onde também se tornou mestre, doutor e livre docente.

Autor de cento e dez artigos científicos em revistas nacionais e internacionais. É membro da reverenciada Academia Nacional de Medicina, além de outras importantes sociedades médicas e científicas no Brasil e em outros importantes países.

É também professor. E também marido. E filho. E pai. E amigo. Amigo das letras. Amigo de seus pacientes.

Dr. Raul Cutait tem muitos pacientes. Em sua vida profissional, desfilaram mulheres e homens conhecidos e desfilaram outros cujo maior conhecimento se dava no ambiente sagrado de um lar repleto de angústia pela doença que chegou sem ser convidada. Um de seus pacientes, o vice-presidente da República, José Alencar, homem que se tornou referência pela aparente paradoxal convivência entre a serenidade e a garra, assim orou: Meu sentimento é de gratidão a Deus e às pessoas que têm feito uma verdadeira corrente por mim. Nem sei se eu mereço. Se eu fizer alguma coisa na minha vida que possa ao menos dar uma demonstração de reconhecimento disso, já ficarei satisfeito. Merece sim. Todos nós, viventes, merecemos.

Raul teve uma inspiração muito especial para atingir os ideais de competência e de decência na vida profissional. Seu pai foi um dos maiores médicos da história de nosso país, Dr. Daher Elias Cutait. É dele este ensinamento: A mão do sucesso profissional tem cinco dedos: caráter, vocação, talento, esforço e disciplina. Repetia que a medicina era, sim, um sacerdócio. Não raro, quando um médico entra no quarto de um paciente, ele melhora. O médico possui a magia de, com uma simples aparição, pedir à dor que se despeça.

Seu pai, querido Raul, certamente está em festa conosco hoje. A saudade é uma compreensiva companheira.

Falemos de saudade. Perdemos o convívio de um apaixonado pelas letras. A cadeira de número 30, cujo patrono é Diogo Feijó, foi ocupada durante 11 anos por José Mindlin. Homem bom. Gestor competente. Leitor ávido que, assim, declarou: Em um mundo sem livros, eu não gostaria de viver, ou ainda, A gente passa, os livros ficam. Mindlin não passou. Sua prosa gostosa não tem mais o poder de aquecer o nosso chá, mas o legado de sua vida continua aqui, neste espaço sagrado da Academia dos Imortais Paulistas.

Em seu lugar, um cientista. Um médico como dissemos. Um cultor da humanização da saúde. Disse Raul Cutait: A medicina bem exercida depende do conhecimento, das pessoas envolvidas, do sistema e dos recursos econômicos. Contudo, o grande diferencial é a motivação do médico e dos demais profissionais de saúde de se envolverem com seus pacientes numa atitude de cumplicidade, dando o melhor de si em prol de um atendimento que os beneficie, no limite da competência humana e do conhecimento científico.

É importante reforçar estes dois últimos conceitos: competência humana e conhecimento científico. Sem ciência, não há Medicina. Não se improvisa um médico. É preciso conhecer a complexidade da saúde e da doença. Dos alívios possíveis. Mas é preciso mais. A competência humana é que faz a ponte entre a doença e a esperança.

Da cura ou da passagem mais serena para o encontro com a transcendência.

A Medicina faz poesia e, da poesia, recebe gratidão. O poeta Thiago de Mello assim agradeceu ao Dr. Adib Jatene que cuidou de seu coração e de seu coração:


A vida sempre foi boa comigo.

Quando soube que o meu coração

estava carregado de sombras,

e que ele só se alimentava de luz,

abriu uma janela no meu peito

para que por ela possam entrar

o resplendor do orvalho,

o fulgor das estrelas

e o invisível arco-íris do amor.


É dessa janela encantada, título do poema, que ousamos falar nesta noite. Somos cultores das palavras, apreciamos a língua como uma excelência que nos entranha e nos preenche, emprestando razão à nossa existência. Amamos as personagens e os ensaios.

Preocupamo-nos com o não-dito, percorremos as dúvidas. E o que seríamos sem as dúvidas?!

Uma ciência se faz de dúvidas. Ratificamos e retificamos o que conquistamos. Damos passos para novos horizontes. Movemos o mundo e a nós mesmos para que os sentimentos pululem em folhas e em teclas.

Teclas. Entramos em uma nova fase. Alguns chamam de pós-modernidade, outros de hiper-modernidade. Não importa. O fato é que não sabemos até onde essas relações virtuais serão capazes de nos conduzir.

Seja bem-vinda a tecnologia que revolucionou a Medicina. Sejam bem-vindos os computadores de todas as espécies e soluções. Sejam bem-vindas a robótica e a sua precisão. As máquinas foram criadas pelo homem e estão à disposição do homem. Mas precisamos mais. Precisamos voltar ao que foi ontem e que deverá ser sempre. O enlaçar das mãos, o pulsar das conversas, o olhar que devolve o futuro.

A Medicina carece de médicas e médicos humanos. Parece desnecessária essa afirmação. Não é! Há tantos por aí que negligenciam o ofício magnífico de cuidar do mais vulnerável. As estatísticas servem para a compreensão dos problemas e para a busca das soluções, mas não servem para o cotidiano da dor. Não são os números que precisam de cuidado, mas as pessoas.

Queridos amigos,

Agradeço o privilégio desta saudação. Agradeço o privilégio de conviver nesta casa onde sou um modesto aprendiz. Agradeço ao nosso presidente. José Renato Nalini é um cultor da justiça, das letras e, sobretudo, da ternura. Nalini cuida de nós, de cada um de nós. E quem não precisa de cuidado? Vulneráveis somos todos, carentes de atendimento e de palavras.

Voltemos a Guimarães Rosa:

Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. (...) Como médico, conheci o valor do sofrimento... No sofrimento, meus amigos, a poesia nasce mais pura. Na solidão das nossas doenças, inclusive as da paixão, fragilizamo-nos e brincamos mais delicadamente com a seriedade das palavras.

Nossa solidão não é a desistência. Somos fortes.

Dizia Vinicius de Moraes que: A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

Em nossa Academia Paulista de Letras, não somos solitários. Temos nossa memória, nossa história e temos esperança. Somos fortes, sim. Vivemos para revisitar o passado com respeito e antecipar o amanhã com coragem. Que o amanhã seja menos solitário. Não nos amedrontemos com as máquinas que criamos. Mostremos a elas e a nós mesmos que somos humanos. A vida se reveste de significado quando amamos as pessoas. É o que nos identifica e nos plenifica.

A Medicina e a Literatura são artes de amor e de conhecimento.

Pode entrar, Raul Cutait. A casa é sua!



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