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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Eros Roberto Grau
Com uma homenagem a Cassiano Ricardo, o acadêmico Eros Roberto Grau relembra os antecessores e o patrono da cadeira, além de destacar a gratidão por ingressar na Academia Paulista.

Excelentíssimo Senhor Antonio Penteado Mendonça, Presidente da Academia
Excelentíssimo Senhor Michel Temer, na pessoa de quem saúdo os demais integrantes da mesa
Confreiras e confrades
Senhoras e senhores


“Vamos todos brincar de cacto
...
Uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma folha sobre outra,
formaremos um grande cacto”.

Vamos todos brincar de cacto!
Cassiano Ricardo. Começo com ele. Permitam-me. Nada impede que eu altere a ordem das referências aos que ocuparam a cadeira 11.
Este discurso é meu, por minhas mãos tecido, na obscuridade do que sou. E nada mais desejo neste momento senão recordar o que mencionou o Barão de Brasílio Machado, primeiro presidente desta Academia, após a chegada do Sr. Dr. Albuquerque Lins, Presidente do Estado e seu Presidente honorário [da Academia], no dia 27 de novembro de 1907, na sessão solene da sua inauguração. Sou obscuro “nesta terra de São Paulo, sempre tão nutriente e pródiga de extraordinárias riquezas”. Obscuro, sim, mas desejoso de nela tomar por quinhão boa parcela de trabalho.
Meu discurso, que seja breve, incisivo. Lembro Manuel Bandeira, de quem me tornei amigo em uma manhã distante, na Avenida Atlântica e no Instituto Nacional do Livro, agosto de 1958, no Rio: que seja terno, dizendo as coisas mais simples e menos intencionais, com a beleza das flores quase sem perfume. Para que possa ser possuído, escancaradamente, de lirismo libertário.
A regra recomenda que o empossado louve, em seu discurso de posse, patrono e antecessores na cadeira. Em delicada homenagem aos que se foram. Homenagem que mais delicada há de ser se o for, também, aos que cá estão e não devem ser maçados. Mais os deliciará, esta homenagem, quanto menos prolongada.
Mas do meu discurso cuido eu, na parcela de trabalho que tomo por quinhão, com o quanto possa de delicadeza sendo breve.

***
Começo com Cassiano Ricardo, “por entre os anjos de azulejo/e as borboletas repetidas”. Permitam-me. Ontem é como se fosse hoje. Há mais de cinquenta anos. Como se fosse hoje. Havia um Fasano na Avenida Paulista. Final dos anos cinquenta, esquina da Augusta. Não mais do que duas, porém seguramente mais de uma vez eu o vi tomando um milk-shake [não era um chá, tenho certeza]. João torto e a fábula, Martin Cererê.
No mesmo veio veio Raul Bopp. Depois Ascenço Ferreira e Vargas Neto; Álvaro Moreira e Olegário; Augusto Meyer. Eu descobrira a poesia completamente em Fernando Pessoa. Com meu professor de português no curso clássico, Massaud, Massaud Moisés.
E Cassiano Ricardo estava ali, no Fasano da Avenida Paulista, provocando-me a brincar de cacto, uns nos ombros dos outros. Por isso me permiti começar por ele.

***
Devo, contudo, tomar-me pela mão do nosso patrono.
É maravilhoso ser ele, o “Padre voador” nascido em Santos, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o patrono da Cadeira 11. Porque a motivação de voar está em quem o siga, o padre nosso patrono, tentando alcançar o éter “u[m] nos ombros dos outros”. Alcançarmos o éter para nos conhecermos, conhecermo-nos a nós mesmos. Pois o éter, como o Saramago diz que diz o nosso padre, --- deem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes --- “antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres” . Alcançamos o éter para conhecermo-nos, a nós mesmos. No “Balão de São João” ou Passarola do nosso patrono e por outros meios. Cientes de que, como ele ensinou ,
“[t]res coisas pois são necessárias à ave para voar, convém a saber: azas, vida e ar; azas para subir; vida para as mover; e ar para as sustentar...”
Faltando um desses elementos, serão inúteis os dois. Porque asas sem vida não podem ter movimento, vida sem asas não pode ter elevação e ar sem estes indivíduos --- asas e vida --- não pode ser sulcado.
É mesmo maravilhoso, no sentido do maravilhoso, ter sido Bartolomeu Lourenço de Gusmão o patrono da nossa Cadeira. De nada, para nada serviria termos um rosto, qualquer rosto, se ninguém deitasse sobre ele algum olhar. Não é exatamente isso o que o padre diz, mas apreendi assim sua referência à ave, às asas, à vida e ao ar. Mais. Aprendi a desejar que seja simpático, se não inteiramente de ternura, esse olhar. Sem ele, embora esteja cheio de vida, porte minhas asas e exista o ar, sem ele não teria sentido essa vontade de voar que me fascina.

***
Monsenhor Francisco de Paula Rodrigues. Padre Chico, simplesmente. Devo cumprir a regra, mencioná-lo como o fundador da Cadeira 11 e algo mais, biograficamente. Homem culto, doutor em Teologia em Roma. Professor de latim no antigo Curso Anexo da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o que me encanto em relatar. Mas, sobretudo, um homem simples, generoso, de quem basta dizermos que era culto, simples e generoso. Nenhum adjetivo a mais, nenhuma outra palavra. Basta o seu nome. Peço a ele que também me tome pela mão no curso do meu percurso pela e na Academia.

***
Sucedeu-o padre Benedito Paulo Alves de Souza, afastado de São Paulo, e da Academia, porque sagrado Bispo do Espírito Santo dois anos após sua posse. Daí que o relato neste passo é breve, como breve foi sua passagem entre nós. Como um acorde de valsa.

***
Então veio Cassiano, ao tempo em que “[s]ó havia pirilampos/imitando o céu nos campos”. Sua opção política nunca me fez falta, porém o ritmo de balsa em seus poemas era como valsa trazendo o horizonte pra bem perto. Ritmadamente.
Não pretendo mais do que esta noite mencionei lembrando o amigo de longe, Cassiano, tomando milk-shake no Fasano. Que outros tracem sua biografia. A mim só cabe a confirmação de que, subindo-nos uns aos outros, uns nos ombros dos outros, chegaremos ao céu num cacto. De onde tiraremos uma fotografia exata, para provar a Deus que a terra não é redonda, mas chata; “não é redonda, mas chata”.
Tudo é poesia, meus amigos. Tudo é poesia para quem não se pretende mais do que obscuro jardineiro que, discreta e silenciosamente, conversa com as plantas e os pássaros. Ave, asas, vida e ar para quem nada mais pretenda senão voar.

***
Tito Lívio Ferreira --- com quem também aprendi a gênese social da gente bandeirante na povoação de São Paulo de Piratininga --- em seguida.
Cuidado! --- advirto-os. Se escaparmos por uma fresta do tempo reencontraremos por aqui, pelas mãos de Tito Lívio, não apenas João Ramalho. Participaremos, em 1562, do confronto da pequena força da povoação, comandada por Martim Afonso Tibiriçá --- o índio Tibiriçá --- com os índios Tupiniquins. Vencemos. Vencemos naquele tempo, 1562, e vencemos o tempo. Passado e presente superpostos e, o futuro, antigamente. Tudo é poesia, sempre! Tito Lívio Ferreira ensinou-me essa gênese heroica. Basta-me destarte.

***
Depois veio Milton Vargas, que conheci no IPT do meu velho amigo Alberto Pereira de Castro. Que turma de amigos mais velhos tenho tido pela vida, hein!
Com Milton Vargas descubro poesia nas estruturas de concreto. Descubro que em cada cálculo matemático estão encapsulados poemas de que toda a gente, de todas as línguas e dialetos, pode fruir. Basta, também.

***
Nenhum dos traços desenhados, de meus antecessores, compõe uma fotografia exata, o que não me aborrece, dada a consciência de que, para mim, seria inviável traça-los. Em um poema jamais completado afirmei sobre mim mesmo, quando jovem, ser poeta da linha reta, pois a traçava curva. E digo outra vez, mesmo porque aos setenta e um recomeço a adolescer.

***
O largo do Arouche provoca meu passado. Invento uma manhã de ontem incrustada no agora. Trago em meus dedos o perfume de bergamotas descascadas ainda há pouco. Uma manhã com gosto de maçã.
Vínhamos aos domingos, meu pai e eu, comprar flores para minha mãe. Antes do Casserole, almoçávamos no La Popote, mais adiante, na rua Frederico Steidel. Mal poderia supor, naquele tempo, que anos após eu sucederia Frederico Steidel, e Geraldo Vidigal, em sua cátedra na velha Academia do largo de São Francisco.

Sou um enamorado da vida. Que vida a minha vida, como disse em um poema --- mas como eu gostaria de ter dito antes --- Paulo Mendes Campos!
Penso agora, contudo, no poeta de São Paulo mais próximo de mim, o poeta da Academia de cabelos brancos debruçada no chão da chácara do Arouche. Circulo por entre aí, no chão de Paulo Bonfim, debruçado no passado e no presente, no presente, no passado e no futuro. Trago comigo lembranças corretas e outras assim não tanto, lembranças da juventude que nunca passará. E do passado mais longínquo: o general Arouche de Toledo e a “peruada”, para quem conhece as estórias e as histórias das velhas e sempre novas Arcadas do Largo de São Francisco.
Os dois largos da minha vida, agora. Mas aqui acontecem manhãs com vontade de invenção de amanhãs. O tempo aqui, agora, assume diversas perspectivas. O presente incessante, pedaços recortados do passado e fiapos de futuro. No sorriso de meus netos, por exemplo. Fiapos aos quais me agarro para estar por um tempo ainda por aqui.
Volto, porém, ao Casserole, onde aconteceu o último almoço com Donda, meu amigo de infância. Muito antes desse almoço, 1951, Eduardo vinha da praça Marechal. Eu o encontrava de manhãzinha no bonde 14, Vila Buarque, na esquina da avenida Angélica com a Baronesa de Itú. Íamos ás aulas na Escola Americana. Eduardo Kugelmas, o amigo de sempre que se foi, mas está presente em todos os amigos que cá estão, como ele, agora. Minha agora nova Academia, debruçada sobre o seu, nosso, passado.
Quando amanhece o largo se enche de pássaros e chegam as flores ao chão da chácara do Arouche. Manhãs com gosto de maçã e perfume de cascas da bergamota. Então, se ninguém me vê, subo nos meus próprios ombros, vou mais alto do que vai o avião e ponho-me a jogar pedras no cão da constelação. Como se fosse um dos anjos de Cassiano, obscuramente glorioso, gloriosamente obscuro.

***
Agradeço a generosidade de Ignácio de Loyola Brandão, que me recebe derramando fraternidade. A ele e às confreiras e confrades, o meu olhar de gratidão, que pretende dizer mais do que palavras, gesto de afetividade.

Agradeço aos amigos que cá estão. Amigos queridos que o tempo conservou, permitindo que eu os conservasse e, alguns, reconquistasse.
Mencionarei, entre fatos e circunstâncias, apenas um e outro nome, sorrateiramente. Quase de improviso.

***
Conhecemo-nos na "esquina"! 1959, creio. Somos amigos desde então, da mesma idade --- Aloysio é mais moço [parece mais moço ainda, mesmo sendo Senador]. Amigos desde então. Michel, irmão de Fued (meu colega de doutoramento), casado com Maria da Glória, que foi contemporânea de Lenita, minha sogra, no Santa Marcelina; Maria da Glória que era irmã de Geraldo Ataliba, que se foi mas ainda nos guia, como diria, naquele poema em som de tango, Enrique Santos Discépolo. Michel, simplesmente, porque, antes de tudo, amigo.
Como Aloysio. Aloysio, simplesmente, porque antes de tudo amigo.

***
Como outro amigo de desde então, desde a "esquina", antes na confluência da Barão de Itapetininga com a Ipiranga; após na 24 de maio; depois de 1964, itinerante. Serra, este abraço em ti, agora, é de tamanho suficiente, enorme, a que eu traga ao meu peito todos nossos amigos da "esquina" e, mais, amigos do Rio. Gente como o camarada Aymoré, que atende pelo nome de Marcelo e cá está.

***
Votar em todas as eleições em um mesmo candidato! Eleitor contumaz de um mesmo deputado! Agora, ainda que a idade me dispense do dever cívico, hei de votar. Só que três coisas são necessárias para tanto. Como diria o patrono da cadeira 11, três coisas são necessárias para votar, convém a saber: título de eleitor, eleição e candidato. Asas, vida e ar. Eleitor, eu sou; eleições, elas virão; preciso de ar, Goldman: quero votar!

***
Fatos e circunstâncias. Um discurso encantador, outubro de 1963, no Cine Niterói, rua Galvão Bueno. Um ato cívico convocado pelo então presidente da UNE, o Zé Serra! E o discurso mais vibrante que ouvi em toda a minha vida, Almino. Almino, que discurso!

***
Agradeço aos amigos que cá estão. Permitam que a todos abrace em dois abraços --- que não tenho braços para tantos amigos! Abraço meu amigo mais velho, o amigo mais próximo da idade de meu pai, Armênio, o velho camarada Armênio. Abraço frei Oswaldo, meu irmão por recíproca adoção (e Dom Fernando que me absolva por ele ser dominicano, não um franciscano...).

Meus amigos! Um dia estaremos todos, todos juntos, lá no alto, onde prevalecem a boa vontade e as boas intenções. Bem no alto, lá onde os anjos derramam afeto e ternura no cão da constelação!

***
Alcanço --- e bem a tempo! --- as linhas finais deste discurso.
Sou um enamorado da vida. Um livro que escrevi sobre o quartier Saint-Germain-des-Prés, eu o encerrei com as seguintes palavras: “Se eu for para o céu direi a São Pedro, ao chegar: --- Camarada! Foi muito bom! Dá p’rá voltar?”.

Minha vida tem sido assim, desde antes do recomeço dando vontade de voltar.
Tenho sido feliz, muito.
Quero bem a toda gente, embora por certo ame os mais próximos dedicadamente. Netos --- Bia, Ana Cristina, Roberto --- filha e filho --- Karin e Werner (Werner Grau como o seu --- dele --- avô). Tenho memória de muito carinho por minha mãe.

Esta noite, nas linhas finais desta oração, desejo dizer, no entanto, que duas pessoas são responsáveis por mim. Uma mulher e meu pai.
Um homem reto meu pai, de uma dignidade insuperável. Ensinou-me a ser fraterno e solidário, a buscar distinguir o bem do mal, a ser dócil, mas ainda --- e sempre --- a não ceder diante de qualquer chicote. Meu exemplo, meu orgulho, meu pai.

E Tania, esta mulher ao meu lado há quarenta anos.
Guardo para a nossa intimidade as expansões que a cerimônia desta noite desperta. Permito-me somente dizer, se menciono gratidão pela Vida, que temos sido cúmplices um do outro, Tania e eu, em todos os sentidos --- meu percurso intelectual é também produto seu. Cúmplices. Temos sido cúmplices na e da construção da ternura, do amor, da felicidade. Obrigado, minha amiga.
Esta noite será plenamente linda quando eu sussurrar ao seu ouvido que a amo.



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