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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Renata Pallottini
A acadêmica comenta a trajetória do patrono da cadeira 20, assim como de seus antecessores e faz uma homenagem ao avô.

Senhor Presidente da Academia Paulista de Letras; prezado amigo-irmão que me recebe nesta oportunidade; prezados colegas acadêmicos; caros amigos, sempre solidários em todos os momentos; lembranças queridas dos que já se foram; senhoras e senhores.
Creio que são evidentes o meu orgulho e a minha alegria ao entrar para esta Casa e passar a conviver com meus pares, companheiros de projetos e de sonhos, construtores da palavra e da vida.
Só quem luta muito para vencer sabe dar valor à vitória. Minha vida tem sido uma série de batalhas contínuas, e só as mulheres lutadoras, os cultores da Arte e os poetas podem avaliar o quanto digo.
Por isso, queria pedir licença à Casa para começar contando um pouco a respeito de minha origem e de minhas raízes, cujo conhecimento pode lançar luzes sobre o sabor doce da conquista.
A gente do povo, na Itália, usa freqüentemente uma frase otimista, para saborear a certeza da finitude do mundo: tutto il mondo è paese. Pode-se dizer que isto significa, no fundo, que somos todos igualmente seres humanos, que podemos viver onde estivermos e onde a vida nos for mais propícia. É talvez esse o dito popular que mais se adapta ao espírito das migrações.
Meu avô paterno, Giovanni Pallottini me dizia, cheio de orgulho, que havia nascido, em 1887, na Via dei Pettinari, em Roma. Roma addentro , acrescentava, enfatizando o detalhe; não era da província, nem vassalo estrangeiro.
Veio para o Brasil em 1901, voltou para a Itália no ano seguinte, e retornou, anos depois, com os pais, em caráter definitivo.
Era preciso trabalhar e ele se havia formado, na escola romana, tipógrafo. Não era um camponês, era um borghese, palavra que , no seu tempo, não era um insulto!
Trabalhando muito, chegou a ter a sua própria casa, a Tipografia Pallottini, primeiro na rua das Flores, depois na rua Claudino Pinto. Foi lá que fiz o meu primeiro livro, Acalanto , com um amor de quem faz o seu com suas próprias mãos.

O pai de minha mãe chamava-se Guido Monachesi; nascido em 1883, havia chegado ao Brasil em 1907, proveniente também de Roma, embora fosse nascido em Macerata, província de Le Marche. Era um rebelde anarquista conhecido, emigrado por razões políticas.
Não cheguei a conhecer meu avô Guido. Sei que era um rapaz bonito, que se casou com minha avó Carmen, um amor rebelde . Morreu em 1918, aos trinta e cinco anos, no interior de São Paulo, de um tiro nas costas, a mando de poderosos. Colhido em pleno retorno à casa de sua companheira Alice, um segundo amor igualmente intenso, ao lado de seu corpo foram encontrados, em expectativa , seu cavalo Altivo e a cachorra fiel, Serena.
Havia sido preso, certa vez, pela polícia da época , metido numa cela que nunca era deixada sem um certo nível de água no chão. Foi levado em seguida para Santos, onde lhe ofereceram, inclusive, dinheiro, para deixar o país. Ele recusou e permaneceu para lutar e depois morrer.
É bonito saber que o avô-herói recusou dinheiro para desistir de um direito que era seu; é triste saber que o avô tipógrafo perdeu seu único filho varão, Pedro Pallottini, meu pai, morto aos 23 anos.
Por ele e por mim é este fragmento de poema:

"Passaste uma existência vigiando o abandono
E agora sabes: nunca foste abandonada.
Papai foi para a guerra.
Só; mais nada."

Às vezes penso que o avô herói e o avô tipógrafo - para mim ambos heróis tiveram origem nos mesmos campos e nas mesmas cidades e, contemporâneos que foram, talvez tenham se cruzado nas ruas da Roma do século XIX , minha Alma mater , minha origem.

Porém, alguém mais deve fazer parte desta lembrança agradecida: tive um padrasto, órfã que fui aos três anos de idade; minha mãe, uma linda mulher chamada Iracema, voltou a casar-se e desta vez com um cidadão de Macaé, Estado do Rio de Janeiro, um Pereira de Souza legítimo, sobrinho do paulista de Macaé, Washington Luiz; Djalma Reid Pereira de Souza, meu segundo pai, me contava que, muito jovem, foi um dia visitar o ilustre tio já Presidente e , adolescente ingênuo, pedir-lhe auxílio para algum empreendimento estudantil. Djalma dizia que Washington Luiz o ouviu e, depois de um momento, respondeu:
- "Meu filho: eu estou aqui para ajudar o Brasil, não para ajudar a minha família."
Meu padrasto voltou triste para Macaé, mas muitos anos depois, entendeu o tio solene. E assim fiz eu; essa foi uma das muitas lições que meu segundo pai me deu, a par de toda uma vida de estímulo, encorajamento, meios materiais e morais para a minha formação.

A cadeira 20 desta Academia, que hoje com prazer ocupo, tem como patrono o fluminense José Ezequiel Freire de Lima, nascido em Rezende, no mês de abril de l850 e morto em Caçapava, São Paulo, em novembro de 1891 , afetado por aquela tuberculose que havia já colhido tantos românticos brasileiros.
Foi, além de poeta, cronista, professor, jurista. Viveu a maior parte de sua curta vida em São Paulo, tendo escolhido como lugar do seu descanso, a proximidade da natureza, com um amor que já se anunciava nos primeiros versos do seu livro de estréia, "Flores do Campo", de 1874.
Entre as muitas peculiaridades que se podem notar no trabalho desse poeta, aparece a primazia no cantar um personagem quase desconhecido no seu tempo. Ouçamos:

"Nas noites sem luar, nas horas mortas
Quando a lareira não tem mais gravetos
É tudo escuridão pelas senzalas
E só se ouve o ressonar dos pretos
Surge de além das bandas da tapera,
Cavalgando um corcel de taquari,
O curioso espectro das modorras
O herói das sextas-feiras: o saci !"

É interessante notar que, só no século seguinte, Monteiro Lobato, também membro desta casa, ressuscitaria a imagem do moleque negro e perneta, o Saci, numa pesquisa feita através do jornal "O Estado de São Paulo", em 1917. Mais adiante, em 1921 , voltaria a tratar, desta vez em livro infantil, o personagem mitológico brasileiro. Mas, quarenta anos antes, Ezequiel Freire já o havia redescoberto.

O fundador da cadeira 20 é o conhecido jurista Reinaldo Porchat, nascido em Santos, em maio de 1868, grande orador e senador emérito. É sabido que, eleito para o Senado estadual em 1923, renunciou ao seu cargo dois anos depois, por não se conformar com o fato de que o Senado se curvava ao poder executivo. Que saudade destas atitudes!

O titular seguinte, professor José Soares de Mello nasceu em Monte Alto, São Paulo, em 1808; formado em Direito pela tradicional Escola do Largo de São Francisco, de onde proviemos tantos de nós, tornou-se conhecido como brilhante cultor do Direito Penal; foi também famoso orador e tratadista. Conta-se que, pouco antes da morte, pediu para voltar a São Paulo. A cidade que amava só o recebeu já morto.

E chegamos finalmente à personalidade de Hernani Donato, homem de letras e estudioso que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente.
Hernani Donato, meu antecessor nesta cadeira, nasceu em 1922, na cidade de Botucatu, em São Paulo. Foi um apaixonado pelas coisas de sua terra, como bem testemunha o nosso confrade, acadêmico Francisco Marins.
Francisco Marins, escritor de todos nós conhecido, me conta que foi amigo de infância de Hernani, companheiro de escola e de projetos.
De fato, o primeiro ensaio que ambos cometeram, ainda estudantes, foi um livro de aventuras, em vinte e cinco capítulos, chamado "O Tesouro", que escreviam alternadamente, durante as aulas menos interessantes.
"O Tesouro" foi publicado como folhetim, no jornal "Diário de São Paulo", um capítulo por dia , com sucesso, até o dia em que um dos dois (Marins não diz qual) escreveu a cena em que um navio , de piratas provavelmente, entrava por uma praia adentro para lançar âncora. À imagem de um navio ancorando em praia o editor do Diário se indignou e suspendeu a publicação, privando-nos, assim, de uma prematura obra prima.
Mas, na verdade, o amor de Hernani Donato a sua terra se concretizou no "Achegas para a história de Botucatu", primeira edição em 1954, e agora reeditado para dar notícia do talento de seu autor e grande historiógrafo.
Outra pesquisa sua, original e curiosa, foi a busca de estudar e refazer o caminho do Peabiru, rota anterior ao descobrimento, de origem inca, que fazia a ligação entre Cuzco, no Peru e o litoral de São Vicente, em São Paulo. O caminho tinha o intuito de facultar a antigos habitantes dos Andes e do litoral peruano a chegada ao Oceano Atlântico, com as conseqüências naturais de cunho político e econômico.
Hernani foi um homem de vários interesses e curiosidades múltiplas: como conseqüência da adaptação de seu romance "Chão Bruto" para o cinema, o que lhe rendeu vários prêmios da categoria, chegou a freqüentar o Curso de Dramaturgia da Escola de Arte Dramática da USP; foi historiador, ficcionista, antropólogo, tradutor. Membro de várias associações culturais, lutou em defesa do livro e em defesa do escritor, nos vários campos nos quais militou. Morreu em 2012, deixando memória da autenticidade e nobreza de um verdadeiro artista.

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E chegamos, finalmente, ao fim desta nossa palestra; está se abrindo a primavera de 2013, o sabiá-laranjeira já canta no meio da noite, ensinando a sua Arte aos filhotes, e despertando a inexplicável ira dos insones. Eu mesma não sou das pessoas que dormem bem, mas é muito importante para mim ouvir o som deste cantor da vida, do amor e da perenidade.
Já tendo cumprido os cinqüenta anos (não direi há quanto tempo...) tenho que fazer algumas opções. Aprendi com a própria vida que podemos aceitá-la enquanto ela nos quiser, ou refluir para a tristeza, a amargura, a negação. Aqueles velhos de quem falei com carinho no início, por sua coragem e espírito de aventura, me deram lições de aceitação.
Quero viver enquanto puder e viver com energia e com espírito de luta. Quero ajudar aos necessitados, não só aos necessitados de pão, mas também aos que sofrem a carência da Beleza.
Quero ser digna dos que me deram vida, cada qual lutador em seu campo, na política, no trabalho simples, no destemor frente às dificuldades, assim como desejo, nesta oportunidade que me é ofertada pelo lugar que ocuparei nesta Academia, dar continuidade ao labor intelectual, social e poético realizado por meus antecessores, honrando a tradição da cadeira número vinte.
Como será que cheguei a ser poeta? Não posso dizer me decidi a isso, ninguém toma, racionalmente, essa decisão. Algum santo baixou, algum grego, pela via siciliana da velha Siracusa se incorporou , alguma senhora romana, impedida de se expressar por sua condição de mulher, veio me pedir passagem. Mais do que me perguntar "por que sou poeta", eu me perguntaria "para quem?". Poucas pessoas lêem poesia no Brasil; poucas páginas de jornal se importam com isso. Ouvi de um livreiro que "poesia não vende" (título, aliás, do meu próximo livro) e de um grande editor que "nos próximos três anos não recebe originais de poesia" .
Não fiz, nesta oportunidade, nenhuma citação em latim ! Pois aí vai : alea jacta est. A sorte está lançada: para viver, sobreviver, amar, escrever poesia , servir, servir; servir enquanto Deus seja servido.

MUITO OBRIGADA.





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